“Cinco Esquinas”, o novo romance do Nobel peruano Mario Vargas Llosa, 80, lançado agora no Brasil, começa com uma cena de sexo entre duas mulheres. As amigas Marisa e Chabela pertencem à tradicional elite de Lima e nunca tinham tido experiências homossexuais.
Porém, obrigadas a passar uma noite juntas na casa de uma delas, por conta do toque de recolher que era imposto durante os anos mais terríveis do confronto com a guerrilha do Sendero Luminoso, na década de 1990, o inesperado acontece.
Paralelamente, o marido de Marisa, um importante empresário, recebe chantagens por parte do editor de um jornal sensacionalista que possui fotos dele numa orgia sexual.
“O romance é a história de como vários aspectos do período fujimorista (1990-2000) afetaram a sociedade peruana. O toque de recolher mudou hábitos e criou essas situações em que a paranoia do regime autoritário e o medo dos atentados terroristas encontravam no sexo uma válvula de escape”, explica Vargas Llosa, por telefone, desde Madri.
Tabloides financiados
Mas é na ação dos tabloides financiados pelo regime que o escritor peruano foca a atenção. O caso fictício narrado no romance é uma mistura de várias passagens reais de que o autor teve conhecimento na época.
“O fujimorismo usou uma rede de jornais sensacionalistas, pagos pelo Estado, para chantagear empresários e destruir suas reputações, em troca de dinheiro e apoio.”
O título da novela se refere a um tradicional bairro limenho de mesmo nome, cujo centro é uma curiosa intersecção de ruas que formam um espaço urbano inusual, como o próprio nome diz, com cinco esquinas.
“Esse era um local importante desde a Lima colonial. Aí estavam embaixadas e casas de famílias de posses. Depois degradou-se e virou um lugar violento, de atuação de traficantes. Quando eu comecei a frequentá-lo, vivia uma ressurreição, artistas e escritores tinham se mudado para lá, havia música, boêmia e agitação intelectual.”
Era em Cinco Esquinas que o jovem Vargas Llosa, aos 16, ia parar no fim da noite, depois do trabalho em seu primeiro emprego, como redator do jornal “La Crónica”.
“No livro, é no bairro que atuam e vivem alguns desses personagens do submundo da imprensa sensacionalista.”
O escritor vê em seu livro, assim como em uma série de novos romances, investigações acadêmicas e filmes que tratam do período fujimorista, uma mudança da relação dos peruanos com aquele passado traumático da história.
“Agora os peruanos conseguem refletir sobre o período sem tanta paixão e radicalismo. Era uma época de extremos, por um lado uma esquerda fanática, que chegava a aplaudir a luta armada. Por outro, a duríssima repressão do Estado, que invadia todos os aspectos da sua vida.”
Para ele, os trabalhos das comissões de paz hoje dão um quadro mais claro daqueles enfrentamentos entre guerrilha, milícias rurais e Exército - que ao final fizeram mais de 70 mil vítimas.
“Mas esse trauma ajudou a criar uma espécie de consenso nacional que, de alguma maneira, atravessou os governos democráticos. O consenso de que precisamos de uma política mais realista e de livre mercado, preocupada em diminuir as diferenças sociais e manter a liberdade, e isso vem acontecendo.”
Amigo do atual presidente, o recém-eleito Pedro Pablo Kuczynski, crê que seu governo será de reconciliação.
“Nesta última semana tivemos o julgamento do massacre de Accomarca, que havia vitimado 69 camponeses na mão do Exército. Essa verdadeira cara da guerra, cuja principal vítima foi a população humilde e indígena do interior, está sendo mais exposta, finalmente. É importante para deixar claro que esse é um passado a que nunca mais devemos voltar.”
Brasil
Sobre a crise no Brasil, Vargas Llosa comenta de forma generalizada. “O que está acontecendo no país, com a população demonstrando não aturar mais a corrupção, é algo positivo. Espero que todo esse movimento aponte para uma renovação da política brasileira”, afirma.
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