“Fechemos este livro. Canudos não se rendeu. Exemplo único em toda a História, resistiu até ao esgotamento completo. Expugnado palmo a palmo, na precisão integral do termo, caiu no dia 5, ao entardecer, quando caíram os seus últimos defensores, que todos morreram. Eram quatro apenas: um velho, dois homens-feitos e uma criança, na frente dos quais rugiam raivosamente cinco mil soldados. Forremo-nos à tarefa de descrever os seus últimos momentos. Nem poderíamos fazê-lo. Esta página, imaginamo-la sempre profundamente emocionante e trágica; mas cerramo-la vacilante e sem brilhos. Vimos como quem vinga uma montanha altíssima. No ar, a par de uma perspectiva maior, a vertigem.”
Assim Euclides da Cunha encerra o épico “Os Sertões”, das mais importantes obras fundacionais da literatura brasileira. E aqui o spoiler funciona ao contrário: é justamente por já conhecer o final da Guerra de Canudos, relatada minuciosamente pelo autor na obra, que fica difícil resistir a todo texto que precede a “vertigem” euclidiana. Ainda mais na edição caprichada que acaba de chegar às livrarias pela novata Ubu, criada por ex-diretoras da Cosac Naify em São Paulo.
“Edição mais bonita”
Uma edição que traz, além do texto de Euclides, um caderno de fotos de Flávio de Barros, que registrou o conflito à época, entre 1896 e 1897; o fac-símile da caderneta de campo de Euclides da Cunha, que mostra como o então correspondente do jornal “O Estado de S. Paulo”, que foi cobrir o massacre que resultou no livro, publicado em 1902; e toda a fortuna crítica do clássico - os 14 textos mais importantes já publicados sobre a obra, desde Silvio Romero, passando pelos de Antonio Candido, Gilberto Freyre, Antonio Houaiss, até Walnice Nogueira Galvão, principal estudiosa da obra no Brasil e organizadora desta edição.
Em capa dura e arte inspirada na topografia do arraial baiano, a edição ainda tem uma versão caixa, que acompanha um livreto com as correções que Euclides da Cunha fez ao longo das edições - o que mostra de que forma ele foi abrasileirando a própria linguagem.
“É, sem dúvida, a edição mais bonita de todas que já foram feitas. Torna a leitura agradável, atraente. Não estou acostumada!”, brinca Walnice, antes de defender a permanência do clássico: “A radiografia que Euclides da Cunha fez do Brasil nesta época é perfeita e atual até hoje”. ‘Esses miseráveis do Brasil são responsabilidade nossa’, diz ele, literalmente. Euclides fez um mapeamento dos principais temas que ocupariam a literatura e as ciências sociais anos depois, e ocupam até hoje. Como o fato de as metrópoles litorâneas serem voltadas para a Europa, enquanto o Brasil do interior é abandonado. E o fato de a relação entre esses dois se dar na forma de massacre. Euclides mapeia a miséria brasileira, a questão do índio, do negro, da religiosidade popular, da desigualdade social. Isso tudo vai pautar o romance dos anos 30 e toda a Ciência Social nos anos 40. É extraordinário o que ele fez.”
Melhor que os críticos
Sobre a crítica mais recorrente ao texto, o de ter uma leitura difícil, hermética e até contraditória, ela ressalva:
“Depois de oito anos trabalhando neste texto (para escrever o ensaio crítico incluído nesta edição, lançado em 1994 e revisto agora, Walnice passou oito anos estudando tudo que Euclides havia lido antes e durante a escrita do clássico, mergulhando a fundo na estética do autor), posso dizer que ele é muito melhor do que todos os seus críticos. São tantas coisas, detalhes, descrições, narrativas, que não podiam ser expressas em uma linguagem simples, tinha que ser difícil, não havia como lidar com tudo aquilo de forma simples ou não contraditória”.
Com o fim da Cosac, a ex-diretora editorial da casa Florência Ferrari juntou-se à ex-diretora de arte, Elaine Ramos, e à economista Gisela Gasparian para fundar a Ubu, nome inspirado em “Ubu Rei”, de Alfred Jarry.
“A ideia da Ubu é ser uma editora que atue ativamente em debates do nosso tempo, fazendo conexões entre áreas distintas, trazendo textos e produções artísticas para pensar o mundo de hoje”, explica Florência, lembrando que ter a obra como marco inicial da editora não foi arbitrário.
“‘Os Sertões’ é uma obra clássica, um marco da literatura moderna brasileira e dos estudos da identidade nacional, que apresenta com uma qualidade literária impressionante o enredo de um confronto entre um movimento social e o Estado brasileiro. Esse confronto não é passado. ‘Os Sertões’ é uma leitura atual e, diria, obrigatória e apaixonante”.
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