Só há um jeito de descrever "The children of Húrin" (Os filhos de Húrin), novo livro de J.R.R. Tolkien, autor de "O senhor dos anéis": um soco no estômago, daqueles dados com precisão cirúrgica. Os críticos literários mais esnobes, que adoravam pegar no pé do autor (nascido em 1892 e morto em 1973) por causa de supostos personagens de baixa complexidade, otimismo e finais felizes vão ter de engolir em seco. "The children of Húrin" traz uma visão sombria e desesperada do mundo, um herói culpado de traição, assassinato e incesto e um ritmo aventuresco capaz de capturar até o leitor mais desatento.
Os mais chatos podem discordar do uso do adjetivo "novo" para designar um livro escrito por um autor morto há mais de 30 anos. A confusão é fácil de explicar, já que Tolkien deixou uma massa gigantesca de escritos inéditos quando morreu. A tarefa de lidar com esse vasto material não-publicado coube a seu filho caçula e testamenteiro literário, Christopher.
Ele passou as últimas décadas publicando volume após volume dessa obra antes oculta, lutando contra dezenas de versões variantes da mesma história - Tolkien, maniacamente perfeccionista, reescrevia inúmeras vezes seus textos. Foi graças à edição de Christopher Tolkien que os fragmentos da saga de Húrin e seu filho, Túrin Turambar, finalmente vão poder ser lidos como uma narrativa detalhada e contínua, tal como o pai do editor havia sonhado. É por isso que a maior parte do texto - pedaços espalhados ou resumos da trama - já tinha sido publicada em outros livros do autor, como "O silmarillion" e "Contos inacabados" (ambos já disponíveis no Brasil).
Máquina do tempo
"The children of Húrin" é uma história do passado remoto da Terra-média (região equivalente ao nosso Velho Mundo numa época remota, onde se passam as sagas de Tolkien). Bota remoto nisso: a trama se passa cerca de 6.500 anos antes de "O senhor dos anéis".
A Terra-média está debaixo da sombra da guerra e do genocídio, cortesia de Morgoth, "o Inimigo Escuro" - ninguém menos que a versão tolkieniana do Demônio. (Ele é o chefão de Sauron, seu equivalente em "O senhor dos anéis".) Só que, na mitologia de Tolkien, Morgoth decide construir seu Inferno no mundo físico - uma fortaleza conhecida como Angband, da qual ele comanda vastos exércitos que ameaçam escravizar a Terra-média e seus habitantes. Mas os reinos dos imortais elfos, junto com seus aliados, os guerreiros humanos das Três Casas dos Edain, ainda ousam desafiar Morgoth e lutar pela sua liberdade.
Entre os humanos rebeldes está o nobre Húrin, Senhor de Dor-lómin. Mas Húrin parte para uma batalha decisiva contra Morgoth, deixando seu filho pequeno e a mulher grávida em casa. E aí a coisa desanda de vez: derrotado em batalha, Húrin é levado à presença de Morgoth e, como se recusa a trair seus aliados élficos, é aprisionado em tortura perpétua. Como se não bastasse, Morgoth amaldiçoa toda a família do guerreiro.
A narrativa passa então a acompanhar as andanças do jovem Túrin, filho de Húrin, e a multidão de desgraças que a combinação explosiva entre a personalidade do menino e a maldição de Morgoth acaba trazendo. Levado para a proteção do exílio, ele é adotado por um rei dos elfos e se transforma num guerreiro praticamente invencível, mas a desgraça parece segui-lo feito as abelhas rodeiam o mel. Onde quer que vá, Túrin troca de nome o tempo todo - um sinal claro de suas tentativas desesperadas de fugir do próprio passado - e ganha posições de comando e destaque, mas todos os seus planos de enfrentar Morgoth e vingar sua família se convertem em mais desespero.
É claro que não ajuda o fato de que Túrin tem um caráter difícil, orgulhoso e violento, dado a explosões quase assassinas e erros brutais de julgamento que o levam a escolher justamente os amigos e a mulher errada, ou a se deixar levar pelos planos que Morgoth traçou para ele. Túrin é uma figura que lembra um bocado os heróis trágicos gregos, como Édipo, ou escandinavos, como Siegfried, e a força literária da trama é justamente ver como livre-arbítrio, maldição e destino se unem (para usar uma expressão da moda, "agem em sinergia") para arrastar Túrin ao abismo.
Coragem sob fogo
De quebra, a história provavelmente é o melhor exemplo de um dos temas mais apreciados por Tolkien na literatura antiga que ele conhecia tão bem: a chamada "teoria da coragem do Norte". Dito assim parece uma chatice sem tamanho, mas o conceito é um bocado interessante.
A teoria da coragem é uma característica típica da mitologia escandinava, do norte da Europa. Ao contrário do que se vê no cristianismo ou na mitologia grega, no Norte o lado do bem, que reúne deuses e humanos contra as forças das trevas, está destinado a perder de goleada do lado do mal quando o Apocalipse (ou melhor, Ragnarok) chegar. Mas os heróis pronunciam um "dane-se" fenomenal diante desse destino sombrio e continuam a lutar com todas as forças mesmo assim. Mesmo a derrota completa não transforma o certo em errado, segundo a teoria da coragem do Norte.
Esse é o espírito de Túrin. Eis o que ele diz ao comentar o fato de que seu pai, ainda que amaldiçoado e prisioneiro, continua a resistir a Morgoth. "O desafio de Húrin Thalion é um grande feito; e, embora Morgoth possa matar aquele que o pratica, não pode fazer com que esse feito nunca tivesse existido. Não está ele escrito na história de Arda [a Terra]?"
Qualquer um que tenha sentido o peito queimar com a vontade de fazer o que é certo, pouco importando o custo ou as conseqüências, sabe do que ele está falando.
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