Livro faz de Foenkinos um tipo de aberração

A história narrada por David Foenkinos em A Delicadeza é de uma inocência comovente, quase desavergonhada, que se sustenta em um paradoxo: o de ser uma comédia romântica francesa e descomplicada. Relações amorosas entre franceses costumam ser tudo menos simples – assim ensina a literatura e o cinema produzidos no país.

Quando Nathalie, a protagonista, conta o nome de um filme favorito, ela fala de O Amor em Fuga (1979), de François Truffaut. Ela e o marido adoram a música-tema, composta por Alain Souchon, falando de desilusão amorosa.

Truffaut realizou uma série de cinco filmes em torno de um mesmo personagem, chamado Antoine Doinel, vivido por Jean-Pierre Léaud.

O périplo cinematográfico começou com Os Incompreendidos em 1959 e terminou duas décadas depois, justamente, com O Amor em Fuga, cobrindo vários momentos do personagem, da infância à vida adulta pós-separação.

Criando um contraponto ao último episódio da série de Doinel, A Delicadeza não fala da fuga do amor, mas do modo como ele pode se cristalizar, congelar no tempo. Como se fizesse dele uma estátua – algo sem vida, é verdade, mas resistente à passagem do tempo. Um monumento. Essa cristalização é desencadeada por uma tragédia.

Nathalie tem uma vida tranquila ao lado do marido. Ela é uma mulher linda com um homem divertido que a ama. Os dois são uma referência para as pessoas que os conhecem porque encarnam certo ideal de felicidade, um casal perfeito mesmo em seus defeitos.

Sem estragar a leitura de quem se interessar pelo livro, dá para revelar que, nas primeiras páginas, o casamento feliz é fulminado por um acidente de trânsito. Ela perde o marido e entra em um processo lento e doloroso de luto.

A viuvez de Nathalie é vista como uma providência pelo seu chefe – o homem que a contratou cinco anos antes. Desde que viu a fotografia dela no currículo, o sujeito se apaixonou. Nos mesmos dias em que o chefe decide admitir o amor pela funcionária, esta se deixa levar por um impulso aparentemente irracional. Durante uma reunião breve, ela, que também é responsável por uma equipe, beija um dos seus funcionários – o homem mais grotesco do escritório. O sujeito mal consegue processar o ocorrido. E, claro, se apaixona por ela.

Apesar da tristeza na situação encarada por Nathalie, o livro não é exatamente sombrio, mas também não é otimista. Ele é... delicado. Talvez seja essa a me­­lhor palavra.

A inocência que costura o texto de Foenkinos tem a ver com a fé do autor no poder do acaso. Uma crença do tipo que explica até os eventos mais banais, atribuindo-os a um plano-mestre que rege a vida de cada um.

Ponto de vista

A Delicadeza faz de Foenkinos uma aberração na literatura francesa em vigência, afastando-o de autores mais céticos e pessimistas (Michel Houllebecq é o rei desse grupo), politizados (Marie NDiaye) e pornoeróticos (Catherine Millet e Sacha Sperling).

Representa inclusive uma mudança forte na visão de mundo do autor. Os romances Em Caso de Felicidade (sobre o casamento) e Quem Se Lembra de David Foenkinos? (sobre o mundo literário) carregavam o que se pode chamar de cinismo realista. O autor atestava o lado amargo da vida com um esboço de sorriso no rosto, um sorriso disparatado.

A Delicadeza quer acreditar no futuro e tem uma personagem cativante. Nathalie aceita as tristezas com serenidade, sofre muito, mas não procura explicar ou entender o que, enfim, não pode ser explicado ou entendido. E toma a vida do jeito que ela vem. GGG

Serviço: A Delicadeza, de David Foenkinos. Tradução de Bernardo Ajzenberg. Rocco, 192 págs., R$ 34,50.