Entrevista
"Existem coisas que jamais saberemos sobre essa história"
Durante três anos, a jornalista carioca Cristina Chacel vasculhou arquivos da ditadura, fez centenas de entrevistas e leu dezenas de livros para escrever Seu Amigo Esteve Aqui, biografia encomendada por amigos do militante Carlos Alberto de Freitas. Em entrevista por telefone à Gazeta do Povo, ela falou sobre como foi escrever seu primeiro livro-reportagem:
O fato de o livro ter sido encomendado por amigos do biografado te travou?
De forma alguma. É um projeto que teve uma remuneração, mas no qual passei três anos trabalhando. O livro nasceu como uma ação entre amigos, para homenagear o Beto. É claro que tive cuidado com a história das pessoas, pois elas estão implicadas ali. Então a construção foi coletiva e de uma forma muito horizontal, respeitando o compromisso histórico e o diálogo [com os colegas do militante].
Qual a dificuldade de escrever sobre um personagem que só era conhecido como o colega de Dilma Rousseff na adolescência?
Foi difícil à beça [risos]. Não é uma história que você descobre buscando no Google. Partes dela estão em publicações de difícil acesso ao público, em arquivos desorganizados e praticamente indisponíveis para consulta. Outro problema é a origem dessas informações, pois elas foram tratadas pela inteligência militar. É preciso medi-las o tempo todo, para descobrir se são verdades ou caminhos para a investigação [jornalística].
Você precisou completar partes da história com suposições?
Tive a preocupação de fazer isso o mínimo possível. Mas trata-se de uma narrativa cheia de lacunas. Existem momentos que opto por não preenchê-las, como quando Beto é preso. Não descrevo com detalhes, porque não tenho essas informações. Existem coisas que jamais saberemos sobre essa história.
O militante Carlos Alberto de Freitas, o Beto, foi assassinado no porão de um local conhecido como Casa da Morte, em Petrópolis (RJ). A família nunca soube o paradeiro do jovem estudante de esquerda, vítima de perseguição do regime militar brasileiro (1964-1985).
Beto é conhecido como o colega de Dilma Rousseff, com quem conviveu durante a adolescência em Minas Gerais. Além de conhecer a atual presidente do Brasil, o personagem era praticamente um anônimo nos registros sobre a resistência à ditadura.
O livro Seu Amigo Esteve Aqui (Zahar), da jornalista carioca Cristina Chacel, reconstrói com minucias a trajetória do militante que desapareceu em 1971, aos 32 anos. O título da obra faz referência a uma declaração ouvida por Inês Etienne Romeu, outra militante, de um policial na Casa da Morte.
Até o mês passado, a frase era a única prova de que Beto tinha sido assassinado no porão da câmara clandestina de tortura dos militares. O jornal Folha de S. Paulo, no dia 23 de dezembro, publicou documentos que comprovavam a morte do militante.
Narrativa
Seu Amigo Esteve Aqui joga uma luz sobre a personalidade discreta de Freitas, que fez parte de organizações essenciais na resistência ao regime militar como é o caso da Ó Pontinho e da Vanguarda Armada Revolucionária Palmares. Além de ser um pivô de várias células contra o regime, o estudante manteve um relacionamento com Iara Iavelberg, também era amante do guerrilheiro Carlos Lamarca.
O aspecto mais impressionante do livro de Cristina, que foi encomendado por amigos de Beto, são as descrições minuciosas das teias do movimento estudantil da época. Sob uma atmosfera de constante paranoia, os jovens burocratizavam suas ações respeitando redes confusas de resistência. A autora dá sentido para essas relações, permitindo ao leitor adentrar debates calorosos sobre uma possível queda dos militares.
A divergência sobre como combater o regime foi um dos aspectos que acabou fragmentando essas redes. Personagens como Lamarca defendiam a luta armada. Beto acreditava na revolução por meio de um confronto pacífico de ideias. Nenhum dos dois viveu para ver o fim da ditadura muito menos a chegada da companheira Dilma ao poder, anos depois.
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