No meio da noite, um grupo de turistas perambula pela Praça Roosevelt, em São Paulo. O guia explica aos visitantes que o local é a maior concentração de teatros do cenário underground paulistano, uma espécie de off-Broadway tupiniquim. De vez em quando a cena se repete. E Rodolfo García Vázquez acha graça. Quando ele e Ivam Cabral escolheram a praça para instalar a sede dos Satyros a situação era muito, mas muito diferente. O prédio que hoje serve de QG ao grupo era um hotel de travestis. Assaltos faziam parte da rotina. Ameaças de traficantes também. Um cenário tão distante que nem parece que faz apenas dez anos que a polêmica trupe voltou de Portugal e abriu ali o seu Espaço Satyros.
É para saudar a data que eles lançam hoje um livro que revê sua história. Mas a ambição do vultoso volume (Imprensa Oficial, 368 págs., R$ 100) vai além. Não compreende apenas a última década, mas os mais de 20 anos que passaram desde a estreia da companhia em Curitiba, no ano de 1989. Deveria ter ficado pronto em 2009 para as comemorações de aniversário. Acabou, porém, só saindo do prelo em meados deste ano. E aí é o Satyros quem estava de luto. Em junho, a morte de Alberto Guzik, ex-crítico do Jornal da Tarde, ator e dramaturgo que era um dos nomes centrais do grupo, adiaria o lançamento mais uma vez. "Resolvemos então esperar pelo aniversário de dez anos de mudança para a praça", comenta García Vázquez.
Figura de destaque dentro da companhia nos últimos anos, o ator Germano Pereira está hoje um pouco afastado, envolvido com a gravação da novela "Passione", na qual interpreta Adamo, um dos filhos de Tony Ramos. Foi a ele quem coube a organização da publicação, que tem o formato de uma fotobiografia e revisita 44 montagens dos Satyros - aqui e na Europa. Bilíngue, a edição traz textos do organizador e de Aimar Labaki, que tenta capturar a chave da poética do grupo, sua habilidade de transitar com a mesma desenvoltura ora pelo clássico, ora pelo contemporâneo. O foco do livro, contudo, são as imagens.
Maratona
Difícil discorrer sobre a companhia sem evocar seu protagonismo no processo de reurbanização do centro. Ao menos de uma parte dele. Na sua esteira, eles atraíram atrás de si outros grupos - caso dos Parlapatões que lá se instalaram com sucesso. Souberam se reproduzir e expandir seus domínios: criaram o Espaço Satyros 2, ocupado prioritariamente por trabalhos de outros grupos, o festival Satyrianas, maratona teatral que congrega várias correntes da cidade, assumiram a direção da nova São Paulo Escola de Teatro, financiada pelo governo do Estado. As dezenas de fotografias do livro, porém, ajudam a contar essa história também por outro prisma. Que passa ao largo do papel dos Satyros como agitador cultural e nos obriga a lembrar da potência, da violência perturbadora de algumas de suas criações.