Professor, diretor e pesquisador teatral, o catarinense Fernando Kinas é hoje um dos propositores de um teatro em mutação, disposto a debater questões da sociedade contemporânea como, por exemplo, os diversos tipos de intolerância que causam a violência e a miséria. Para Kinas que se embrenhou pela sétima arte como co-diretor do curta Cartas da Mãe, entre outros trabalhos , o cinema vem cumprindo seu papel. Já o teatro "abdicou do seu poder analítico, crítico e de interferência no mundo", declara em entrevista concedida ao Caderno G.
O Bom Selvagem, novo espetáculo da Kiwi Companhia de Teatro, criada por Kinas em 1996, em Curitiba, é um exemplo deste teatro empenhado em provocar no público reações pró-ativas em relação ao mundo que o cerca. O espetáculo fica em cartaz até o dia 17 de setembro, no Teatro José Maria Santos (R. Treze de Maio, 655), (41) 3304-7954, de quinta a sábado, às 21 horas, e aos domingos, às 20 horas.
A peça traça um paralelo entre o encontro dos europeus com os primeiros habitantes do Brasil, no século 16, e as relações nada cordiais de "iguais" e "diferentes" no mundo de hoje. A partir daí, dá início a uma investigação das crueldades cometidas pelo ser humano ao seu próximo. É um tapa na cara do espectador, que sai do teatro um pouco envergonhado, refletindo sobre os seus próprios atos. Kinas pretende mostrar este "bom selvagem" em outras cidades brasileiras e na Europa. "Como o Clóvis (Inocêncio, ator da peça) mora em Berna, na Suíça, as definições sobre a continuidade da temporada são um pouco mais complicadas", conta.
Kinas, que dirigiu R, Tudo o que Você Sabe está Errado e Carta Aberta, vive em São Paulo, para onde ainda migram profissionais desejosos de alçar vôos maiores. Nesta entrevista, ele fala, entre outras coisas, sobre O Bom Selvagem, as metamorfoses do teatro e a produção teatral em Curitiba, que ele chama de "uma cidade curiosa".
Em seu curta-metragem Cartas da Mãe, você e Marina Willer fazem uma reflexão sobre o Brasil contemporâneo a partir das cartas escritas pelo cartunista Henfil para sua mãe. Essa preocupação de pensar o país, que também aparece no espetáculo O Bom Selvagem, permeia todo o seu trabalho?
Fernando Kinas O sociólogo francês Roger Bastide, que trabalhou vários anos no Brasil, escreveu que o sociólogo, para entender o Brasil, deveria freqüentemente se transformar em poeta. Eu acho útil inverter a equação. Assim, o poeta (no sentido de "criador de arte"), para entender o Brasil, deveria freqüentemente se transformar em sociólogo. Em outros termos, os artistas não perderiam muito em recusar certas veleidades que os impedem de fazer o exame, a investigação, sobre a situação do nosso país. A "torre de marfim" não tem dado resultados muito bons.
As referências que você faz na peça, não só aos tipos de intolerância que observamos no Brasil, mas a questões que estão eclodindo na Europa, como o preconceito dos europeus em relação aos imigrantes, têm a ver com as vivências que teve na Europa, quando estudava Artes do Espetáculo em Paris? Sim, pois O Bom Selvagem é uma tentativa de refletir, poética e politicamente, sobre o mundo em que vivemos, incluindo, especialmente, a situação brasileira. As inúmeras referências à persistência de uma visão autoritária, preconceituosa e violenta em relação aos primeiros habitantes do Brasil, além de passagens como as que mencionam as relações entre nordestimos e sulistas ou que se referem aos brasileiros desterritorializados como os "brasiguaios", refletem preocupações profundamente ancoradas na nossa história e na nossa cultura. As referências às intolerâncias outras, e infelizmente elas são muitas, ajudam a revelar um ambiente autoritário, hostil e cínico que recrudesce sem respeitar fronteiras.
Ao longo de todo o espetáculo, o público ouve a frase "Pensar o Brasil em cena". Essa sua preocupação metalingüística é, de certa forma, uma crítica ao teatro brasileiro?O objetivo central deste trabalho não é discutir o teatro brasileiro. Mas quando utilizamos uma frase de Denis Guénoun (que faz parte de um texto que eu montei com o nome de Carta Aberta, em 1998), destacando a necessidade de "pensar em cena", estamos reafirmando a importância de incluir nos processos artísticos a reflexão sobre as grandes e as pequenas questões que nos afligem individual e coletivamente. Tem aí, certamente, uma crítica ao teatro que, de tão pouco ambicioso, abdicou do seu poder analítico, crítico e de interferência no mundo. Em vários trabalhos da Kiwi nos últimos dez anos (R, Tudo o Que Você Sabe Está Errado, Um Artista da Fome etc.), o pensamento sobre o próprio teatro estava presente, lembrando como um grilo-falante que nosso pequeno divertimento poderia ser um pouco mais provocativo, incômodo e, portanto, útil.
O ator Clovis Inocencio interage com a platéia, para lembrá-la, inclusive, de que aquilo é uma encenação e de que elas fazem parte do jogo proposto. Desde o início, quando ele se aquece diante do público, existe essa preocupação de quebrar a ilusão de realidade. Essa é uma forma de manter as pessoas "acordadas" para sua própria realidade? A ruptura da ilusão é uma ferramenta utilíssima para evitar a captura do pensamento pelo fluxo sedutor das ficções (sobretudo àquelas que apelam basicamente aos sentimentos). Que o ator receba o público e aqueça-se diante dele, que as luzes da platéia se acendam algumas vezes, que a estrutura da peça seja em tableaux ou que o processo dialético de evocar sucessivos conflitos seja exercitado conscientemente, comprovam a intenção, de matriz brechtiana, de, ao fundir divertimento e conhecimento, ativar os espectadores. O mundo parece cada vez mais um vale de lágrimas. E não se trata apenas do Afeganistão, Iraque ou Líbano, basta olhar a nossa volta. Quando pintamos a tela de vermelho, em duas cenas, em que pese alguma obviedade, estamos sinalizando que um banho de sangue está em curso. Será apenas uma constatação tipo "consciência pesada da classe média" ou um convite às armas? Respostas ao vivo, no José Maria Santos. Jacaré passado vira bolsa!
Sua peça, como outras, busca essa interação entre a encenação no palco e projeções de imagens em telão. O teatro e o universo audiovisual parecem criar vínculos cada vez maiores. O teatro está mudando? O teatro está sempre mudando. E a redefinição dos seus contornos pode aproximá-lo do tempo ou congelá-lo como uma espécie de artesanato curioso, tão anacrônico quanto ineficiente. Dito isso, usar ou não certos recursos tecnológicos me parece que deve estar sempre à serviço de um projeto estético e político mais geral.
No dia 14, o Teatro Novelas Curitibana reabre suas portas com a apresentação de cinco peças curtas, uma delas de sua autoria. O que você está preparando? Preparei uma "reação teatral" que se chama Casulo. É uma tentativa de pensar, em vinte minutos!, o grande mundo e o pequeno mundo. O trabalho reflete, com alguma ambigüidade, o conflito entre as minhas memórias suavemente egocêntricas e a situação lamentável com que a cultura é tratada nesta bela capital do sul do Brasil.
Você viveu e trabalhou muitos anos em Curitiba. Agora está em São Paulo. A partir dessa mudança de perspectiva, como vê a produção teatral em Curitiba? Houve evolução em relação ao que é feito em São Paulo?Curitiba é uma cidade curiosa, e esta resposta precisaria de muitas páginas. O que eu posso dizer, sem muito esforço, é que há, no âmbito do teatro, uma flagrante distância entre certas pretensões, ou discursos, e os resultados concretos. O mundo das artes poderia, por exemplo, pensar num movimento como o "arte contra a barbárie", que está redefinindo o teatro paulistano, inclusive com a conquista de um mecanismo de produção teatral (a lei do fomento) não mais baseado na vergonhosa e nada republicana renúncia fiscal.
O que representa esta mudança para São Paulo na sua trajetória profissional?São Paulo permite vôos maiores, embora ver tudo de muito alto possa causar vertigem.
Quais são os próximos projetos? São muitos trabalhos em processo. Até o final do ano a nossa Companhia estreará, além do Casulo, uma experiência cênica chamada "teatro/mercadoria" no Sesc Copacabana, no Rio de Janeiro, e Linha, em São Paulo. Depois, eu preciso descansar um pouquinho.
Novos projetos com cinema? Sobre cinema, é muito bom fazer, mas dá um trabalho conseguir dinheiro... Por enquanto, são mais idéias na cabeça do que projetos.
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