Entrevista com John Gledson e Lúcia Granja - Pesquisadores
Organizador de coletâneas (50 Contos de Machado de Assis, Cia. das Letras) e autor de ensaios definitivos (Por um Novo Machado de Assis, idem) sobre a obra de nosso maior escritor, além de esmeradas traduções para o inglês de sua obra, o professor e pesquisador inglês John Gledson aguarda a publicação da terceira edição, bastante revisada, da série de crônicas Bons Dias!, uma de três compilações agora lançadas pela Editora Unicamp e que abrange o principal período de ativismo político do Machado cronista. Também prestes a sair, a coletânea das Notas Semanais, de 1878, foi feita em parceria com a professora Lúcia Granja, da Universidade Estadual Paulista (Unesp) ela é responsável ainda pela série Comentários da Semana, de 1861-1862, compilada em co-autoria com Jefferson Cano. Na entrevista abaixo, os dois especialistas na crônica machadiana explicam por que o autor ameaça abocanhar mais esse título: o de maior cronista de seu tempo.
Gazeta do Povo As crônicas de Machado de Assis estão à altura da parte mais conhecida e mais do que consagrada de sua obra em prosa (contos e romances)?
John Gledson Primeiro, temos que perguntar quais crônicas. Machado escreveu mais de 600, ao longo de mais de 40 anos óbvio que ao longo de quatro décadas, vai haver um processo de mudança e amadurecimento. Diria que algumas são (bem) mais duradouras que outras. O exemplo mais notório são as crônicas de "A Semana", a última série, e a maior (248 crônicas, ao todo). Neste caso, Artur Azevedo, por exemplo, achava que "noutro país mais literário que o nosso teriam produzido grande sensação artística". Diria que algumas crônicas sim "estão à altura", dentro das limitações (de tamanho, principalmente) do gênero a crônica de Abílio, a conversa de burros, muitas outras.
Costuma-se dizer que os personagens, os conflitos dramáticos e a linguagem da prosa machadiana são de uma atualidade incrível. Suas crônicas conseguem se manter atuais, mesmo com a provisoriedade própria do gênero?
Lúcia Granja Crônica é um tipo de texto que tem um pé assentado na efemeridade, e o que pode (aparentemente) diminuir a importância das crônicas de Machado é o fato de não mais conseguirmos compreender seus assuntos e, por conseqüência, os recursos de que sua crônica se constrói, o ponto de vista do autor. Mas, quando recuperamos a informação (de época), como nas edições críticas e anotadas que temos feito, os textos são de um interesse absoluto e, em termos literários, atualíssimos.
Alguns críticos, como Leandro Konder, consideram que Machado, Alencar, Bilac e outros dessa geração de cronistas, não contribuíram de fato para a chamada "moderna crônica brasileira", que ganha fôlego a partir dos anos 1930, porque eram "literários demais", enquanto sucessores como Rubem Braga teriam desenvolvido o "despojamento temático e lingüístico" que consagrou o gênero. Concordam?
Gledson Não há a menor dúvida que há uma enorme diferença entre os cronistas do século 19, até 1920 digamos, e os posteriores. Seria bem surpreendente se não fosse o caso, vistas as enormes diferenças, não só na sociedade, mas também nos próprios jornais e na sua função na sociedade no século 19, não havia rádio nem muito menos TV, para começo de conversa. As crônicas, por sua natureza, têm tudo a ver com os meios de comunicação, e os cronistas são os primeiros a saudar a chegada de novos meios: Machado entre eles é o caso do telégrafo, por exemplo, na segunda metade da década de 1870, e que Machado já satiriza em 1878.
Lúcia Como determinar o início da "moderna crônica brasileira"? Machado, Alencar, Bilac etc. escreviam para um outro público, acostumado à linguagem que utilizavam. A linguagem e a estruturação dos comentários eram profundamente imitadas das formas breves da retórica. O cronista, como diz Machado, "fala" a partir da "tribuna do jornal" e a oratória é coerente com essa postura. Em resumo, poderíamos pensar que a modernidade da crônica está no tom de conversa ao pé do ouvido com o leitor, o que cada escritor desenvolveu de uma forma diferente e de acordo com os mecanismos de leitura e circulação do jornal em sua época.
É possível definir a que subgênero, tematicamente falando, Machado se filiava: fazia crônica social, política, policial ou, de fato, mais "literária" mesmo?
Gledson Minha impressão é que a liberdade cresceu ao longo da vida (de escritor) e chegou ao auge em "A Semana". Na verdade, ele tratava mais do que lhe interessava mais a inspiração básica de "Bons Dias!", por exemplo, foi política (a Abolição e o processo que levou à República), e é a situação política que explica o começo e o fim dessa série, mas é o único caso. A crônica "policial" mesmo não lhe interessava esses assuntos (crimes passionais, caça aos curandeiros etc.) geralmente envolviam preconceitos que, no mínimo, o irritavam.
O humor era um recurso usado com freqüência em suas crônicas? Indo além: é um recurso obrigatório na crônica brasileira em geral?
Lúcia Há vários fatores envolvidos nisso, mas, de modo muito amplo, poderia dizer que o humor auxilia na construção da intimidade com o leitor e que, para Machado, humor, ironia, paródia, sátira estavam sempre presentes e a serviço da composição de um texto coeso e fortemente crítico.
Gledson O humor, a ironia, o sarcasmo são essenciais a tudo, praticamente, que Machado escreveu, sobretudo depois de 1878-1880, e na crônica bem antes disso. Sem isso, ele literalmente, literalmente, não existiria como escritor, e sabia disso. Não sei se o humor, embora muito comum, é obrigatório (na crônica brasileira). Em alguns casos penso em certas crônicas de Rubem Braga, de Clarice, até mesmo de Drummond o papel do humor é mais do que compensado por um impulso puramente lírico.
Faz diferença ler o gênero no seu habitat natural o jornal, a revista ou já nas coletâneas em livro, que são a forma como hoje podemos ter acesso às crônicas de Machado?
Lúcia Faz uma diferença enorme. A crônica é um texto em diálogo com o jornal. Mas em nenhum caso, mesmo quando lemos, em forma de livro, os contos e romances que Machado publicou originalmente nos suportes materiais da imprensa, os efeitos dos textos sobre o leitor são os mesmos. Não há uma leitura melhor que a outra, no suporte de origem ou fora dele, mas elas são primordialmente diferentes.
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