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Custa para o estranhamento passar. Primeiro com os nomes. O protagonista se chama Ka. A cidade, Kars. O livro, Kar, que, em turco, quer dizer Neve (Tradução de Luciano Machado. Companhia das Letras, 488 págs., R$ 54). Há também uma cidade Batman (!) e vários nomes de locais e personagens têm letras esquisitas ou acentos em locais estranhos.

Por essas e outras, Orhan Pamuk, 54 anos, era um escritor exótico. Hoje, é necessário. Ao menos na medida em que alguém se acha na obrigação de conhecer mais sobre o mundo islâmico e pode considerar importante uma indicação do Prêmio Nobel de Literatura, recebido pelo autor em 12 de outubro passado.

Sim, ele é o primeiro turco a ser laureado pela Academia Sueca e, sim, mesmo peneirando o ressentimento daqueles que não ganharam, a escolha é, em grande medida, política e não literária.

O Nobel estaria mandando uma "mensagem". No anúncio do prêmio, explicaram a escolha afirmando que o autor "à procura da alma melancólica de sua cidade natal, descobriu novos símbolos para o choque e o entrelaçamento das culturas". As palavras-chaves aqui são "choque" e "entrelaçamento".

Neve é tido como o romance mais político de Pamuk. A história funciona como uma alegoria dos embates entre Ocidente e Oriente. O poeta Ka (iniciais de Kerim Alakusoglu, que ele repudia) é pago pelo jornal Republicano, de Istambul, para viajar a Kars, acompanhar as eleições municipais e descobrir porque as mulheres da cidade estão se suicidando.

No íntimo, Ka quer é rever uma paixão antiga, Ipek, recém-divorciada. Com sorte, espera se casar com ela. Ao longo da história, tem-se pequenas dicas de quem é o poeta. Por algum motivo, essas informações são passadas de modo sutil. O narrador, por exemplo, "sussurra" dados biográficos.

Ka tinha 42 anos, era tímido e gostava de ficar sozinho. Não lidava com política, mas foi obrigado a viver um exílio político na Alemanha por 12 anos. Aos poucos, a personalidade do poeta ganha nuances e se descobre que seus olhos eram "acostumados a procurar o próprio nome em jornais literários" (descrição de alguém, no mínimo, vaidoso) ou que ele nunca deu importância à Ipek, mas como estava passando da idade de casar, imaginava que ela seria uma presa fácil, ferida por um casamento frustrado.

A neve cai com violência na história ao ponto de todos na cidade ficarem ilhados. Ninguém consegue entrar nem sair de Kars. Inclusive o ator Sunay Zaim, meio decadente, que aproveita a nevasca para liderar um golpe militar ao lado da mulher, tentando tomar o poder sobre a cidade.

Pamuk é uma espécie de Gabriel García Marquez turco, considerado "pós-moderno" e comparado a Marcel Proust (Em Busca do Tempo Perdido). Algumas de suas histórias tem um quê de realismo fantástico. No outro romance publicado no Brasil, Meu Nome É Vermelho, também pela Companhia das Letras, tudo que é coisa ganha voz narrativa. Da cor vermelha até uma moeda.

Neve pede um mínimo de conhecimento da história turca – as referências a ela são constantes. Basicamente, hoje, o país vive um conflito entre o passado islâmico e a Europa moderna. A dor de cabeça começou com Atatürk, fundador da República da Turquia, em 1923. Ele impôs o secularismo de forma severa, disposto a banir a influência religiosa. O estado laico planejado pelo líder turco nunca se consolidou por completo.

Os partidos islâmicos ganharam força na Turquia atual graças à crise econômica e à corrupção que marca o governo. Essa elite, em parte criminosa, é a principal interessada na entrada da Turquia na União Européia. Os entraves são vários – a começar pela briga entre turcos e gregos, representada pela ilha de Chipre.

A opinião de Pamuk é clara. Qualquer forma de influência islâmica condenaria o povo turco à pobreza e ao isolamento. Não à toa, ele se tornou desafeto do Islã. Em Neve, esse conflito aparece de modo nada sutil. O escritor se dispõe a destratar fanáticos islâmicos que, afinal, não são simpáticos. Mas parece haver algo por trás do texto (ódio?, rancor?) que acaba tirando sua força.

O episódio do assassinato do diretor que proibiu a entrada de moças com a cabeça coberta na escola local é um exemplo de como Pamuk consegue ser óbvio.

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