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Após um longo período em que se deu atenção aos destinos coletivos, pode-se afirmar que atualmente o indivíduo está novamente presente nas reflexões dos historiadores. Dentro dessa nova preocupação, o gênero biográfico vem ganhando espaço em estudos voltados à restauração do papel dos indivíduos na construção dos laços sociais, ao mesmo tempo em que trazem à tona a temporalidade onde se desenrolam as vidas humanas. Diferentemente da biografia tradicional que priorizava demasiadamente o indivíduo fazendo a história pessoal dos grandes vultos, essa nova abordagem biográfica busca hoje pensar a articulação entre as trajetórias individuais e os contextos em que elas se realizaram, como uma via de mão dupla. Nesse caso, a biografia pode desenvolver, além das interpretações sobre a época em viveu certo personagem, outras perspectivas que mostrem suas experiências pessoais; passagens pitorescas de sua vida e – por que não? – até mesmo suas emoções.

Por esses motivos, a história de uma portuguesa radicada no Brasil, no início do século 20, que se valeu da pena enquanto vivenciava a ambigüidade que todo o imigrante experimenta, é um rico campo de análise de uma trajetória individual, dentro das representações específicas do processo imigratório. A personagem central dessa aventura é Mariana Coelho que nasceu em Sabrosa, Portugal, em 1873, e chegou a Curitiba, então uma pequena cidade do sul do Brasil, aos 19 anos, em 1892. Ali instalada, passou a participar ativamente da vida social e intelectual da cidade como educadora, jornalista, poeta e prosadora.

Ao final do século 19, e no início do 20, Curitiba era ainda uma cidade que tentava acompanhar as mais recentes tendências nacionais e internacionais no campo da política e da cultura. Para isso, buscava a remodelação de seus espaços físicos, bem como a modernização de sua sociedade e de seus costumes. Os condutores desta mudança pertenciam a um ativo círculo de intelectuais, livres-pensadores, que florescia em seu meio, mercê da pouca influência exercida pela Igreja Católica cuja hierarquia, sediada em São Paulo, estava a uma distância que impedia uma ação mais ativa em terras paranaenses. Dessa forma, Mariana encontrou, na cidade, uma grande possibilidade de interlocução com os pensadores locais. Logo de início, engajou-se ativamente em diversos grupos intelectuais, destacando-se em três frentes de atuação: a educação, a literatura e o movimento feminista.

Poeta e prosadora desde os 14 anos, Mariana começou suas atividades literárias em Portugal, onde escrevia poesias para o jornal Comércio de Vila Real. Em Curitiba, prosseguiu nesse labor com vasta e ininterrupta produção. Publicou matérias em jornais e revistas e escreveu vários livros. O mais famoso deles é Evolução do Feminismo, publicado em 1933, por tratar exaustivamente de um assunto pioneiro na época.

Efetivamente, desde o início do século 20 travavam-se, em todo o mundo ocidental, extensas discussões sobre a possibilidade de uma participação ativa e responsável das mulheres na vida em sociedade, no mercado de trabalho e na esfera política. Em Curitiba, o ano de 1901 foi palco de um debate que trouxe às colunas do Diário da Tarde, opositores e defensores da causa emancipadora. No ardor dessa polêmica, a feminista Mariana Coelho censurava à professora francesa Georgina Mongruel o conservadorismo de uma argumentação que conferia ao gênero feminino o eterno papel do que ela chamava de "conspiradora de alcova". Mariana opunha-se às condições atribuídas socialmente à mulher, tentando atrair a interlocutora para o campo de suas reivindicações: "Sumariando: sou suficientemente sensata para admitir que a mulher abandone o atraente lugar que desde sempre lhe está marcado no lar, mas sou também essencialmente progressista para não admitir que ela acompanhe convenientemente o progresso, porque entendo que aceitá-lo, excluindo-a, equivale ao absurdo imperdoável de nivelá-la, em parte, com os irracionais."

Assim, defendendo os direitos civis e políticos das mulheres, Mariana embrenhava-se, cada vez mais, em uma atividade que, pela escrita e pela ação, acompanhou-a da juventude à idade madura, até a morte.

Mulher, estrangeira, e "dada às letras", foi igualmente inevitável que Mariana Coelho encontrasse certas dificuldades no meio intelectual curitibano, predominantemente masculino e bastante conservador. Várias foram as polêmicas em que se envolveu, dentre as quais se destaca a publicada nos jornais O Commércio e Diário da Tarde, a propósito do livro Pelas Tradições, de autoria de Júlio Pernetta, jornalista e escritor anticlerical. Nessa obra, o autor criticava duramente a colonização portuguesa no Brasil e o tratamento desumano que os lusos deram ao gentio, posicionando-se, ainda, contra a imigração alemã no Sul do Brasil. Portuguesa e imigrante, Mariana partiu em defesa de suas origens, justificando a atuação dos colonizadores em nome de uma "missão civilizadora": "Aos filhos de Portugal é grato lembrar que êste maravilhoso sólo paranaense (como, afinal, todo o grande território de Santa Cruz), foi ha quatro séculos explorado pela primeira "bandeira" portuguesa (...) E quantas vezes os filhos de Portugal não encontraram, então, a morte, na sua obstinada e vitoriosa labuta para doar ao mundo um Brasil enorme, civilizado, forte e unido!"

Sua extensa argumentação em favor da terra de origem já não apresentava, ao raiar do século 20, a posição conservadora de seus antepassados coloniais, para quem a separação entre Brasil e Portugal era impensável, mas o orgulho de quem se considerava depositária dos bens culturais que deveriam fluir constantemente de um lado a outro do Atlântico.

Como as heroínas de uma obra recente da historiadora Natalie Zemon Davis – em que são traçados os perfis de três mulheres pioneiras do século 17, consideradas por ela à margem das sociedades em que viveram – Mariana também foi uma mulher que vivenciou realidades nem sempre favoráveis, superando-as da melhor forma que pôde.

Sendo portuguesa, muitas vezes sentiu e agiu como tal, em que pese a situação vivida no Brasil em sua época, posição em que se debatia no pertencimento dual a duas pátrias, num verdadeiro conflito de identidade. Por muitas razões, entretanto, não esteve tanto às margens da sociedade como suas companheiras do início do mundo moderno. Mas se sua vida foi menos atribulada do que a daquelas, isso não impede de a vermos como uma mulher que enfrentou corajosamente seus desafios. A sociedade paranaense que a recebeu, com sua cultura peculiar, sua consciência política e social, e sua capacidade de iniciativa, esteve ao menos preparada para acolhê-la e admirá-la. Sua história, recuperada pela nova maneira de visualizar um personagem histórico, não é mais um mero revisitar de um vulto do passado, mas um veio de análise de toda uma sociedade e do desmascaramento das visões equivocadas do que seriam as vivências femininas naquele período.

Etelvina Maria de Castro Trindade é professora do Curso de História da Universidade Tuiuti do Paraná, doutora em História Social pela Universidade de São Paulo e fez pós-doutorado na Sorbonne, em Paris.

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