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Noites viradas e ginga brasileira
Poeta, pintor, boêmio, jornalista e crítico literário, Ciro Correia França nasceu em Ponta Grossa em 1944 e morreu em Curitiba em 2011. Os últimos quatro anos de sua vida foram dedicados à tarefa de traduzir o poema O Gaucho Martín Fierro, depois de ganhar um exemplar original de presente.
"Foi o último amor do meu pai. Este lançamento é a melhor homenagem que podemos fazer para ele", afirma Isabela França, uma de suas filhas.
Pesquisador meticuloso, França virava as noites trabalhando na tradução do poema, na tentativa de dar a seu Martín Fierro uma "certa ginga brasileira". Ainda que não tenha visto a obra pronta, França deixou instruções claras sobre a edição do livro.
"Ele escolheu o papel, a fonte da impressão, o tamanho da edição. A única coisa que ele não pôde escolher foi a capa. Mas acho que conseguimos deixar como ele queria", diz Isabela.
Lançamento
O Gaúcho Martín Fierro
José Hernández. Tradução de Ciro Correia França. Travessa dos Editores, 608 págs., R$ 95. Poesia. Leitura pública e exposição das ilustrações de Osvalter Urbinati, hoje e amanhã, às 17 horas e às 20 horas, no Teatro do Paiol (Praça Guido Viaro, s/nº, Prado Velho), (41) 3213-1340. Entrada franca.
Se os gregos tiveram a Ílíada para forjar a sua mitologia e os franceses a Canção de Rolando como o texto formador de sua identidade nacional, no sul do continente americano há O Gaucho Martín Fierro. Considerado "livro sagrado" na Argentina e com grande influência na cultura da região Sul do Brasil, o poema popular é o canto criador da mitologia dos homens bravios do pampa.
Escrito pelo poeta José Hernández no século 19, o texto acaba de ganhar uma cuidadosa edição bilíngue traduzida pelo poeta curitibano Ciro Correia França (1944-2011). O livro será lançado hoje e amanhã em Curitiba, em dois eventos no Teatro do Paiol que incluem uma leitura pública do texto e a exposição de parte das ilustrações que compõem o rico projeto gráfico da obra, concebido pelo designer gráfico e ilustrador da Gazeta do Povo Osvalter Urbinati. O evento faz parte da programação do Ministério da Cultura para a Copa do Mundo.
Uma das poucas traduções do poema no Brasil, o trabalho demorou quatro anos para ser concluído e foi o último projeto do intelectual curitibano (leia mais ao lado). "Traduzir um clássico é um ato de coragem, no que se incluem ousadia e risco. E se o livro é um épico onde o erudito e o popular estão ligados como unha e carne, essa tradução pode ser considerada ainda mais atrevida", avalia o escritor e crítico literário Mário Hélio Gomes, autor do texto de apresentação do livro.
História de um homem do povo que se rebela contra a arbitrariedade do Estado, o poema mescla aspectos líricos e políticos para fazer uma ode máscula à liberdade.
Em um famoso ensaio sobre o livro, o escritor argentino Jorge Luis Borges (1889-1996) disse que o maior valor do texto "está na entonação e na respiração dos versos; na inocência que rememora pobres e perdidas felicidades, e na coragem que não ignora que o homem nasceu para sofrer".
Façanha
Para Gomes, a grande "façanha" desta versão feita por França é fazer o Martín Fierro "falar português". O leitor encontrará duas vozes afinadas: a de Hernández e a de Ciro, a da Argentina e a do Sul do Brasil, no que têm de mais forte e inspirador", afirma.
Escrito na métrica, ritmo e modo de rimar da poesia tradicional parente do repente e do cordel o texto tem influência das várias formas que assumiram canções e baladas na Europa medieval. "A tradução reuniu o conhecimento erudito dessas literaturas e das mais variadas versões do poema para fazer algo muito próprio e novo", analisa Gomes.
O resultado é algo que mistura expressões muito brasileiras, como "mulherio" e "gauchada", com outras que conservam a força e a rudeza da redação original.
Poema criou a mitologia do gaúcho argentino
Obra fundamental da cultura popular argentina, O Gaúcho Martín Fierro é um poema do escritor, jornalista e político argentino José Hernández (1834-1886). Foi publicado pela primeira vez no ano de 1872 e sua continuação, A Volta de Martín Fierro, foi impressa sete anos depois, em 1879.
Escrito em estrofes de seis versos, com a métrica própria da payada (a poesia declamada de improviso, conhecida como trova no Sul do Brasil), o texto não respeita a forma culta do espanhol, mas sim, imita a prosódia do linguajar dos camponeses gaúchos.
Decretado nos anos 1970 como "patrimônio nacional", o poema ainda hoje objeto de estudo. Em 1953, mereceu um ensaio inspirado de Jorge Luis Borges, que o considerava o "texto fundador da mitologia da identidade nacional argentina rural".
Suas quase 400 estrofes narram em rima a vida do gaúcho argentino que perde sua liberdade ao ser convocado à força para servir no exército. Confrontado com a arbitrariedade da burocracia militar, Martín Fierro deserta e acaba se tornando um fora da lei errante.
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