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Chico Buarque: reverência ao Bruxo do Cosme Velho pode ter sido uma armadilha | Rodolfo Büherer/Gazeta do Povo
Chico Buarque: reverência ao Bruxo do Cosme Velho pode ter sido uma armadilha| Foto: Rodolfo Büherer/Gazeta do Povo

Eulálio Assumpção, narrador de Leite Derramado, novo romance de Chico Buarque, é o quase cadáver de um Brasil morimbundo. À beira do túmulo, o personagem representa o país dos títulos de nobreza concedidos pela monarquia em troca de dinheiro e apoio político. Das famílias com sobrenome, eira e beira, que se refugiavam na ilusão de serem melhores do que o país e sua plebe rude. A terra de uma elite parasitária que, ao longo do século 20, foi perdendo pompa, circunstância até sobrar muito pouco. É a partir desses restos que o autor de Budapeste constrói seu quarto livro.

À primeira vista, Leite Derramado tem uma semelhança formal perturbadora com Memórias Póstumas de Brás Cubas, clássico de Machado de Assis. Os capítulos curtos, numerados, narrados em primeira pessoa. O tom confessional, por vezes autoparódico, adotado para falar do Rio de Janeiro na virada do século passado. A dicção melancólica de alguém que mais perdeu do que ganhou numa existência inglória, algo patética, sempre à sombra do pai, de quem herdou nome e sobrenome, além da obrigação, frustrada, de fazer jus a sua "estirpe". Tudo parece remeter à obra-prima machadiana.

Mas Eulálio, ao contrário de Brás Cubas, está vivo. Por enquanto. Tem quase 100 anos e, com lapsos de memória, talvez causados pela medicação pesada que recebe num hospital público – ou em decorrência da demência senil –, sua vida não brota nas páginas de Leite Derramado de forma linear. É mais um redemoinho, no qual presente, passado e quimera se misturam e se confundem, dragando o leitor. Isso é bom.

Nesse jogo de vai-e-vem, em que nem tudo é verdade, mas a mentira não se assume, Eulálio, ao lembrar de seu grande amor, a mulher Matilde, tropeça em outros personagens célebres de Machado de Assis, Bentinho e Capitu, de Dom Casmurro. O parentesco está no ciúme, na obsessão, na traição que pode ter sido. Talvez não. Nessa aproximação, talvez até mais perigosa do que as semelhanças com Memórias Póstumas, Leite Derramado pode se tornar incômodo – e duvidoso. Excesso de metalinguagem por vezes é sinal de falta de imaginação. Ainda que seja por parte de uma unanimidade nacional como Chico Buarque.

O que resgata o romance dessa armadilha armada pela possível reverência de Chico pela obra do Bruxo do Cosme Velho é a decisão de incorporar à narrativa o estado de confusão mental do protagonista. Seja sob o efeito de morfina, ou da perda acelerada de neurônios em decorrência de uma enfermidade da idade avançada, Eulálio consegue, por fim, escapar dos espectros machadianos.

Em um de seus melhores momentos, Leite Derramado revela que o neto de Eulálio, que a exemplo de todos os homens da família, recebe o nome do avô, com ele estabelece uma relação de carinho e proximidade. Mas, na juventude, torna-se comunista. Vai preso com a companheira e, no cárcere da ditadura militar, nasce mais um Eulálio, a quem o narrador também se apega. Proporciona ao garoto, supostamente seu bisneto, o mesmo colégio de padres frequentado pelo pai, boas roupas e a falsa ilusão de ser superior aos que o cercam. O menino, no entanto, cresce, vira comunista, é preso pela ditadura e, nos porões do Exército, gera mais um Eulálio. Nesse moto-contínuo delirante, o protagonista se esvai, degradando-se como o mundo que representa. Nesses momentos, Leite Derramado alcança alguma grandeza. Digna de um Chico Buarque.

Serviço

Leite Derramado, de Chico Buarque. Companhia das Letras, 200 páginas, R$ 36.

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