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São Paulo – Desconhecido por décadas, o húngaro Sándor Márai vem sendo publicado em português há alguns anos e, a cada lançamento, conquista mais leitores fiéis, impressionados com a produção sóbria, sombria e oblíqua desse escritor e jornalista que atravessou o século 20 (nasceu em 1900, em uma cidade que fazia parte do Império Austro-Húngaro, e se suicidou em 1989, nos Estados Unidos, pouco depois da morte de sua mulher) e deixou mais de 50 livros de prosa, poesia e teatro.

Em nova tradução admirável de Paulo Schiller, chega agora às livrarias uma de suas obras-primas, a narrativa biográfica Confissões de um Burguês (Companhia das Letras, R$ 54; 456 págs.), feita pelo autor quando ele tinha pouco mais de 30 anos e na qual se acompanha, acima de tudo, o romance de formação de um escritor em meio a um mundo que desmoronava, de um ser que muito cedo percebe, paradoxalmente, que a "vida passa nas trevas, palavras não pronunciadas, gestos que em seu tempo desprezamos, silêncios e medos".

Adolescência e guerra

Como se empunhasse uma câmera fazendo aproximações e tomadas à distância, Márai retrata sua casa, sua vizinhança, sua cidade, cada ramo de sua família, compondo a genealogia de homens "feitos de uma matéria sem dúvida diferente, mais sólida e dura que a da maioria".

Vem em seguida a descoberta nada exuberante do sexo, a adolescência, em uma escola que o afasta de todos, e, finalmente, o início da Primeira Guerra Mundial, que simplesmente faz com que sua cidade "mude" de país, passando a ser parte da uma então nova nação, a Checoslováquia. Isso, contudo, não é narrado, como se os acontecimentos que de fato alteraram tudo fossem demasiado excessivos para serem retraçados e só a partir das pequenas coisas a vida pudesse ser minimamente reelaborada pela literatura (note-se que, na época em que isso foi escrito, Sándor Márai ainda não "sabia" que aconteceria uma nova e trágica guerra mundial e que, posteriormente, sua obra seria proibida pelo regime comunista no país que falava a língua em que ele escrevia, o húngaro).

Kafka

Acompanhamos aí a perambulação do autor por diferentes cidades da Europa e sua afirmação na profissão que escolhera desde cedo: "Preparo-me para escrever desde a primeira tomada de consciência, e hoje sinto que trabalho desde a infância, não numa tarefa específica, mas numa ‘obra’ única, imperfeita, atrapalhada, cheia de ervas daninhas e coisas supérfluas...". Para tanto, Márai reconhece precocemente a importância daquele que seria talvez o escritor mais decisivo do século 20, Franz Kafka – "foi como o encontro do sonâmbulo com o caminho reto" – a quem ele dedica pelo menos uma página memorável nessas suas "confissões": "Nunca ‘imitei’ Kafka, mas hoje sei que alguns de seus escritos, pontos de vista, concepções iluminaram em mim territórios escuros".

Os outros livros do autor já disponíveis em português são As Brasas, O Legado de Eszter, Divórcio em Buda, Rebeldes e Veredicto em Canudos, escrito por ele no final dos anos 60 sob o impacto da leitura de Os Sertões, de Euclides da Cunha.

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