Até parece uma seqüência saída de um filme policial violento e cheio de suspense, mas não é. Trata-se da mais crua realidade. O rapper carioca MV Bill e o produtor de hip-hop Celso Athayde estavam fazendo um show em um grande centro urbano da Região Sudeste quando foram informados que, próximo a uma favela situada na periferia da cidade, havia um pequeno edifício decadente e abandonado, onde os jovens da vizinhança, envolvidos com o tráfico, se escondiam para consumir droga, dormir ou simplesmente se esconder da polícia.
A informação não poderia ser mais valiosa. Era uma oportunidade e tanto de ver de perto, em um espaço físico fechado e teoricamente secreto, como se comportavam os garotos em suas horas livres, quando não estavam de prontidão, a serviço do comércio ilícito de tóxicos. Mais do que rapidamente a dupla tratou de se deslocar para o local com o intuito de tentar uma aproximação com os meninos.
Bill e Athayde já estavam no interior do prédio, diante de um cenário descrito como "um verdadeiro inferno", quando o local foi de repente invadido pela polícia, que havia recebido uma denúncia anônima sobre a existência do esconderijo. Confundido com um dos integrantes da gangue, Bill foi agredido com sucessivos golpes de cacetete, recebendo ferimentos em várias partes do corpo, inclusive na cabeça.
Essa é apenas uma de muitas histórias chocantes relatadas no livro Falcão Meninos do Tráfico (Objetiva, 272 págs., R$ 33,90), que está chegando às livrarias com a missão de ampliar e aprofundar o conteúdo do impactante documentário homônimo, exibido com exclusividade pelo programa Fantástico, há dois domingos. Em entrevista exclusiva ao Caderno G, concedida por telefone, MV Bill falou a respeito do projeto que, desde a primeira exibição pública, tornou-se assunto obrigatório até mesmo em círculos pouco acostumados a discutir a realidade social brasileira.
Quando indagado sobre as motivações que o levaram a se dedicar ao que viria a se tornar Falcão Meninos do Tráfico, o rapper conta que o germe da empreitada foi a gravação do clipe de "Soldado Morro", faixa de seu CD de estréia, lançado em 1999. Para dar veracidade ao clipe, Bill e sua equipe optaram por gravar imagens de personagens reais, garotos que trabalhavam na linha de frente do tráfico nos morros cariocas. Embora já conhecesse essa realidade, por ser nascido e criado na já lendária favela de Cidade de Deus, o músico ficou chocado com o painel trágico com o qual se deparou. "Percebi que era necessário dar voz a esses garotos, que geralmente aparecem na mídia quando presos, algemados e de cabeça baixa. Quase sempre, quem fala em nome deles são sociólogos, antropólogos. Senti que era hora de dar-lhes voz, de fazer com que falassem", conta. Isso aconteceu em 1998 e, desde então, Bill e Athayde vêm se dedicando, com apoio da organização não-governamental Central Única das Favelas (Cufa), à missão de expor essa face horrenda das grandes cidades que geralmente é maquiada ou distorcida pela mídia, por desconhecê-la em sua complexidade.
Confiança
Uma das perguntas inevitáveis que qualquer um gostaria de fazer a Bill é como se deu a abordagem dos personagens presentes tanto no documentário quanto no livro. O rapper faz questão de enfatizar que jamais houve "uma negociação", muito menos pagamento de qualquer soma em dinheiro. Cada aproximação se deu de maneira diversa, única, mas a justificativa era basicamente a mesma: queria oferecer aos meninos a oportunidade de contar suas próprias histórias em primeira pessoa, sem qualquer filtro.
Conquistar a confiança dos retratados, no entanto, nem sempre foi uma tarefa das mais fáceis. O notório engajamento do rapper em causas sociais e o fato de o artista ter suas raízes numa conhecida favela também ajudaram no processo de convencimento dos personagens.
Curitiba
Bill revela que um dos pontos fundamentais do projeto de Falcão Meninos do Tráfico sempre foi mostrar que o holocausto invisível retratado pelo documentário não se restringe a áreas reconhecidamente violentas, como os morros cariocas e a periferia da Grande São Paulo. Tanto que uma das experiências mais traumáticas que o rapper e seu parceiro vivenciaram ao longo da gestação do projeto aconteceu em Curitiba, cidade onde, afirma Bill, "existe um conflito racial muito mais grave do que se pensa."
"Estávamos numa favela não interessa qual , gravando entrevistas, quando policiais invadiram e começou um tiroteiro, assim do nada. Tivemos de nos esconder na casa de pessoas da comunidade para não sair ferido", conta o rapper, que relatou o acontecido no livro Cabeça de Porco, também publicado pela Objetiva.
Braço único
Uma das conclusões mais sérias e definitivas às quais Bill e Athayde chegaram, depois de anos convivendo de perto com a violência endêmica nas regiões mais carentes dos grandes centros, é que "a polícia não pode ser o único braço do Estado dentro das favelas".
Além do papel de coibir e reprimir, "as autoridades" não conseguem ir muito mais longe e não fazem qualquer contribuição significativa à melhoria das condições de vida dessas populações.
Segundo o rapper, o quadro apenas tem chances de começar a ser revertido quando houver um investimento público, regular e comprometido, em educação, saúde e resgate da cidadania nas comunidades, visando também os pais desses meninos. Para isso, o trabalho já desenvolvido por organizações não-governamentais é fundamental, mas Bill ressalta que as entidades nascidas dentro da realidade das favelas, como a Cufa, tem muito mais possibilidades de vingar e obter resultados concretos do que iniciativas geradas em outros setores da sociedade, que desconhecem a dinâmica de relações e os problemas cotidianos enfrentados pelos moradores.
Dos 17 meninos selecionados para a edição final de Falcão Meninos do Tráfico, apenas um sobreviveu. Está preso e diz ter um sonho: fazer curso de circo e se tornar palhaço. O desejo de mudar de vida e a vontade de se reinventar fizeram com que Bill e Athayde, antes profundamente deprimidos com a paisagem de destruição detectada ao longo dos anos de desenvolvimento do projeto, recuperassem a esperança e decidissem por exibir o documentário em rede nacional. Perceberam que estava na hora de partilhar o fardo. "O que acontece hoje a esses garotos não é culpa apenas dos políticos, mas responsabilidade da sociedade como um todo. A tristeza e indignação percebidas Brasil afora depois da exibição são sentimentos que passaram a fazer parte da minha vida há sete anos. Achei que era hora de dividi-los."
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