Livro
A República das Abelhas Carlos Lacerda. Rodrigo Lacerda. Companhia das Letras, 520 págs., R$ 49.
A República das Abelhas, de Rodrigo Lacerda, é um gesto de rebeldia historiográfica do qual somente a ficção é hoje capaz. A rebeldia consiste em narrar a história republicana brasileira segundo a ótica de um de seus mais controvertidos personagens: o jornalista e político Carlos Lacerda, avô de Rodrigo. Essa ousadia se apoia num recurso consagrado por Machado de Assis. É desde o túmulo, acima e além das circunstâncias, que Carlos Lacerda narra suas memórias póstumas, exumando no caminho alguns zumbis ideológicos de nossa história política.
Em A República das Abelhas, Carlos Lacerda é um oposicionista nato que bate forte e coleciona inimigos, mas que sabe articular alianças quando o interesse público assim o exige. Filho de um político socialista e sobrinho de comunistas históricos, Lacerda foi construindo uma identidade política própria em meio à barafunda ideológica do século 20, através de rupturas nas quais as motivações pessoais e políticas muitas vezes se superpunham.
Verdadeiro ou não, esse retrato tem a virtude de ser menos tendente à caricatura e, logo, mais propício ao tipo de exercício ensejado pelo romance histórico: a reflexão acerca das relações entre o eu e suas circunstâncias, isto é, sobre o agir e padecer históricos, tema que o livro de Rodrigo Lacerda aborda tanto de uma perspectiva individual quanto coletiva.
Essas perspectivas se articulam numa prosa que transita entre o testemunho histórico, o ensaio político e a crônica jornalística. Nessa mescla de registros, a trajetória de três gerações de políticos (a de Sebastião de Lacerda, avô de Carlos Lacerda; a de Maurício, seu pai, e a sua própria) fornece as bases para uma reflexão de conjunto sobre a política brasileira.
O saldo dessa reflexão é bastante melancólico, sobretudo quando constata "o desperdício humano que é a vida pública no Brasil". Como príncipe Fabrício de O Leopardo, de Lampedusa, Carlos Lacerda conclui que, também aqui, as coisas só mudam para que continuem as mesmas.
A diferença é que, enquanto a máxima consola o príncipe, ajudando-o a suportar sua derrocada política, em Carlos Lacerda a constatação suscita apenas desgosto por um Brasil que, recusando-se a existir, permanece uma "ficção dolorosa que vive de nostálgicos pressentimentos e generosas antecipações".
Trabalhando a partir de um material histórico já dado, o esforço construtivo de A República das Abelhas é o de coerir os episódios de uma trajetória política rocambolesca na unidade de uma visão histórica. É de surpreender que essa visão não somente esteja lá, biograficamente, mas que resulte, no fim das contas, muito útil à compreensão da atual política brasileira.
Da máquina oligárquico-sindical criada por Vargas às distorções do voto proporcional, passando pela tradicional associação entre comunistas e plutocratas, nutrida pela inesgotável capacidade que tem o Brasil de inventar sempre "um novo dono para si mesmo", Carlos Lacerda refaz do além o atualíssimo inventário do atraso brasileiro: o persistente legado da nossa miséria.
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