Pois então Digam a Satã Que o Recado Foi Entendido. Digam que os irlandeses, desta vez, já não podem salvar a civilização. Digam que hoje é o amanhã que ontem nos despreocupava, só que agora ninguém mais dá bola mesmo. Ou digam apenas que o segundo romance de Daniel Pellizzari acabou de sair pela Companhia das Letras. O coisa-ruim, se quiser, que compre e leia.
Contratualmente, o mais recente lançamento da coleção Amores Expressos se passa em Dublin, mas estaria convenientemente ambientado em qualquer grande metrópole do Ocidente, do Ocidente que até ontem tinha nome, endereço, emprego, família e religião, e que hoje descaminha sem lenço e sem documento.
Dublin, Berlim ou São Paulo, de que vale um nome? "Ninguém mais usa o nome verdadeiro", diz Laura a Magnus Factor, seu quase namorado talvez chileno, cujo nome (que ele jura autêntico) sugeriria antes um herói de quadrinhos, não um protagonista apático e deslocado. Incapaz de se alçar em centro agente, ele é antes o foco casual para o qual convergem as demais personagens, também elas indecisas entre viver e padecer a vida.
Trama
Magnus nem gostava de Dublin: foi ficando porque amava uma eslovena. Agora, talvez, já nem a ame tanto. O problema é que ela arrumou as trouxas e foi-se embora, provocando mudanças que atrasam o almoço e ferem o cotovelo. Roteiro típico de comédia romântica, se no entorno não estivessem: tradições falsificadas para consumo turístico, traficantes gregos, atentados anarquistas, uma virgem suicida (Pellizzari é o tradutor do romance de Jeffrey Eugenides, registre-se) e neopaganismo entre o neurótico e o pop. E, em cada um desses vetores, o problema da liberdade, assim como o da busca pelo sentido para a vida.
O romance avança em perspectiva móvel, com recuos e saltos temporais. São sete narradores para 13 narrativas, quase todas em primeira pessoa, exceto duas, narradas, uma, em segunda, e outra em terceira pessoa. Embora cada narrador tenha lá seus tiques e maneirismos, a prosa que flui sob essas assinaturas me pareceu curiosamente homogênea. Os narradores não pertencem à mesma faixa etária, sexo ou nacionalidade, mas é como se todos falassem com uma voz única, a da adolescência (precoce ou tardia, conforme o caso), que hoje em dia começa por volta dos 12 e se prolonga até os 48 do segundo tempo.
Barry é o narrador-personagem mais singular em termos linguísticos. Para caracterizá-lo, o autor abriu mão dos plurais e buscou equivalentes em português para algumas particularidades do Hiberno-English. Daí "idjota" no lugar de "eejit", e "jesuis" no lugar de "jaysis". O leitor que conheça o inglês ficará satisfeito ao flagrar esses truques de tradutor, enquanto outros talvez questionem a razão de uma grafia desviante que, para a maior parte dos brasileiros, não chega a assinalar qualquer diferença na pronúncia.
A resposta talvez seja que "Jesus", grafado assim, ainda é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, enquanto "jesuis" não passa de uma interjeição qualquer, ruído de fundo com o qual se está acostumado. E isso caracteriza perfeitamente o Barry, e com ele as demais personagens.
A imagem de um vácuo espiritual sacudido por espasmos de bizarrice define bem o tipo banal do esquisitão moderninho. A extravagância padronizada, já faz algum tempo, é o bovarismo universal das novas gerações. E bovarismo é existir como ficção para si mesmo, é não ser onde se está, é recusar o aqui e agora: é não ter Eu nem circunstância.
Aí eu penso no sofrimento do jovem escritor brasileiro, e compreendo por que o livro custou dois mil, oitocentos e setenta e cinco dias para ficar pronto. Pois como infundir carne em seres de pó e vento, como obrigá-los à liberdade? Só a morte (própria ou alheia, real ou simbólica) parece lhes dar algum peso, só através dela as personagens recuperam a humanidade. O indivíduo real, enfim, é o que morre mesmo. O resto é convenção ficcional.
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