Charles DAmbrosio parece que optou por uma receita e dela fez seu trunfo, cada vez mais reconhecido. Isso porque, se o escritor norte-americano preza por uma linguagem simples, justa e eficiente, o conteúdo de sua obra e seus personagens são magistral e densamente construídos. A mistura disso revela um narrador singular e um contista no auge de suas palavras.
Também autor do elogiado A Ponta (2008), DAmbrosio se revela um sujeito incomodado. Em O Museu do Peixe Morto, seu segundo livro, essa sensação fica mais evidente. O que temos, em oito contos, é um prosador com a cabeça no lugar, porém com um olhar aguçado e interessado no que está à beira da desumanização, da animalização, da insanidade e do surreal. Do imaginário da sociedade, enfim. Não à toa, a epígrafe da obra, de Albert Camus, fala muito sobre as 254 páginas vindouras: "O homem desesperado não tem terra natal".
O primeiro conto trata da religião como edificação ineficaz. Um garoto que mora em um lar religioso pretende se tornar coroinha. Aprende latim, lê a enciclopédia de cabo a rabo. No altar, "ficava piscando para o Cristo pregado, pra ver se ele piscava de volta". Rezar o fazia cair no sono. Ou pensar em garotas. O futuro coroinha se revela um menino problemático. Bate em colegas, afronta as irmãs. Sabemos depois que o problema começa com o pai, esquizofrênico, que servia tigela de pregos com leite para seu filho no café da manhã.
Em "Drummond & Filho", surge o anacronismo ou o otimismo? O dono de uma bem-sucedida loja de máquinas de escrever tem muito trabalho com um filho que sofre de discinesia tardia, doença caracterizada por movimentos repetitivos involuntários que se desenvolve depois do uso crônico de antipsicóticos. É impressionante a capacidade de DAmbrosio para descrever a paciência e a dedicação daquele pai, que ri, confiante, mesmo quando o filho cai na rua sofrendo ataques para deleite de pedestres curiosos.
No conto "O Roteirista", o bizarro ganha vez. Em um sanatório, um narrador com alguns parafusos a menos tenta provar a si mesmo que é normal. Algum tempo depois encontra, também internada, uma piromaníaca, uma "maluca profissional". A relação esquenta (sem trocadilhos), e uma dose de humor sobressai perante toda aquela incredulidade, já que uma simples vela pode ser um bom motivo para que tragédias aconteçam. Apesar de pouco comuns, as histórias de DAmbrosio têm muita verossimilhança com o que acontece com os "esquisitões" que encontramos ao botar o nariz para fora de casa. É a vida real, nada mais.
No conto "Lá no Norte", o tema sexo é abordado lentamente, em uma viagem angustiante rumo a um chalé interiorano. No caminho, o protagonista descobre que sua mulher sofreu abuso sexual e, por isso, não sente prazer com ele. Semelhanças com as cenas animalescas de Anticristo, último e polêmico filme de Lars Von Trier, não devem ser descartadas.
Destaque do livro é o conto "O Esquema Geral das Coisas". Um casal de picaretas sai pelo interior dos Estados Unidos. Em meio a fazenda de milho e a caipiras pobretões, tenta conseguir dinheiro a custa de pequenos golpes. Nada dá certo, até que um casal de velhos, ternos e espirituosos, os acolhem. DAmbrosio é isso: delicadeza versus densidade.
E o melhor vem no fim.
"O jogo dos ossos" dá a exata dimensão do poder imaginativo do escritor. Um sujeito rico carrega as cinzas do avô em um carro, com o objetivo de depositá-la em um lugar ermo, mas que era de grande apreço do velho. Então salmões descamados, caixas de leite, tiros e personagens misteriosos conferem à jornada um toque mágico, etéreo, surpreendente. D´Ambrosio, 52 anos, veio para ficar. E escrever. GGGG
Serviço: O Museu do Peixe Morto. Charles DAmbrosio. Grua. 256 págs. Preço médio: R$42. Contos.
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