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 | Ilustração: Felipe Lima
| Foto: Ilustração: Felipe Lima

Dias de vinho e rosas. Dias de cão. Dias de geada e de neve. Dias de-mentes. Dias sem fim. Em 1957 eu tinha a vida cheia. Cursava o segundo ano de engenharia, trabalhava na Gazeta do Povo, era correspondente da Associated Press, funcionário do Governo Lupion, fazia o serviço militar no CPOR (Centro de Pre­­paração de Oficiais da Reserva), estudava saxofone, alemão e japonês, já tendo concluído a Cultura Inglesa e a Aliança Fran­­cesa. Ainda sobrava tempo para audições de jazz, papos literários até alta madrugada, serenatas, bailes bem comportados com donzelas da sociedade e perversas paixões em inferninhos com damas da noite.

A equipe da Gazeta do Povo, disposta em várias camadas etárias, era um corte transversal na sociedade curitibana. Um médico assinava a coluna social; um velho escritor era nosso gramático-mor ("Nunca escreva: ‘João, morreu’. Com esta vírgula separando sujeito e predicado ele não vai morrer nunca!"); um cirurgião-dentista, na verdade protético, escrevia crôni­cas; havia um repórter policial que — elementar, meu caro — trabalhava na polícia; e um repórter esportivo cuja família fabricava aguardente. Mas a força da redação era um grupo de jovens estudantes de advocacia, brilhantes e competitivos; o Newton (Stadler de Sou­za), o Daquino Borges, o Nacim Bacila Neto, o Orlando Soares Carbonar, que ocuparia o Pa­­lazzo Doria Pamphili, na Piazza Navona, como embaixador do Brasil em Roma. Na ala caçula, éramos eu, o Carlos Au­­gusto Cavalcanti de Al­bu­quer­­que e colegas de outros jornais, o Adherbal Fortes de Sá Júnior e o Sylvio Back, que se tornaria o cineasta mais polêmico do Brasil. Munidos de armas mágicas como o lide e o sublide, íamos revolucionar a imprensa.

Dias daltônicos. Ou melhor, noites. Ninguém costuma fazer hora ou puxar conversa num escritório de engenharia, numa agência de banco ou num consultório médico. Mas não há quem resista a uma redação. A da Gazeta era um farol para as almas extraviadas da noite curitibana. Um de nos­sos visitantes mais notórios era o escritor Dalton Trevisan. Diziam que ia lá em busca de assunto. Não vejo nenhum mal nisso. Afinal, caçar histórias e per­sonagens é a missão maior do ficcionista. A prin­cipal fonte do Dalton era o Mário de Mello Leitão, dentista com alma de cronista, saudado como o "Rubem Braga do Paraná". Sua vivência boêmia nos tempos de estu­dante no Rio deu caldo às melhores Novelas Nada Exemplares do Dalton. Segundo as más línguas — e em Curitiba elas abundam — Dalton se desinteressou do Mário depois que a fonte secou, tipo "o Mário tá chato, contando sempre as mesmas histórias." Testemunha ocular dos fatos, desminto esta versão. Na verdade, o estilo de vida dos dois entrava em choque. Dalton era disciplinado, um soldado a serviço da sua literatura. Mário era desregrado, vivia em total disponibilidade. Tem uma história dele que o Dalton não contou e que ilustra bem a sua doce loucura. Quando disputava a presidência com JK em 1955, o general Juarez Távora arranjou um avião para fazer sua campanha. Quando o avião — acho que um DC-3 — passou por Curitiba, o Fernando Sabino, juarezista roxo, ligou para a redação e convocou Mário para integrar a caravana aérea. Com a roupa do corpo, sem levar sequer uma escova de dentes ou um aparelho de barba, o Mário embarcou numa odis­­séia cívico-etílica que só o devolveria a Curitiba depois de três meses de comícios em lugares deste Brasil que ele jamais se lembraria de ter passado.

Literatura

Nas noites frias de Curitiba, na Avenida João Pessoa — que se gabava de ser a avenida mais curta do planeta — defronte ao Cine Avenida ou nas redondezas da Boca Maldita (que ainda não tinha esse nome), ou passando pelo relógio da Praça General Osório (segundo Dalton marcava eternamente seis horas) e subindo a Comendador Araújo (Dalton morava por ali na cerâmica do pai e quando a chaminé fumegava dizíamos: "O Dalton está produzindo..."), corriam discussões literárias muito sérias. O Dalton me vendia o Ulisses de Joyce ("leia antes o estudo de Stuart Gilbert"), eu lhe oferecia o J.D. Salinger de Nove Histórias, a ele, que já se amarrava em O Apanha­dor no Campo de Centeio — e se identificava também com o mito nascente de J.D. como arquieremita. A objeção de Dalton aos contos do Salinger era ver neles um certo lado místico, o zen. Eu reagia: "Zen é filosofia, é cabeça pura, nada tem de místico!". Séculos antes tinham acontecido o Eureka! de Arquimedes e o "estalo de Vieira", exemplos típicos de iluminação intelectual — o satori do Zen. O último conto das Nove Histórias, "Teddy", trata de um garoto com poderes mediúnicos. Mas isso não é novidade na Curitiba de Dalton. Afinal, eu e ele tínhamos algo em co­mum: uma tremenda aversão à religiosidade. Acho terrivelmente irônica a guerra santa que Dalton moveria, décadas depois, no alto da Ubaldino do Amaral, contra os sac[r]os decibéis dos fanáticos menonitas e seus cultos movidos a rock pauleira...

Um dos encontros mais insólitos na redação era o de Dalton Trevisan com o trombonista Raulzinho (Raul de Souza, aquele que compunha canções de ninar para os búfalos do Passeio Público). Da Pavuna, Raulzinho saltou de pára-quedas na Base Aérea do Bacacheri com seu trombone de pisto. Tocava na banda da Aeronáutica e, de farda azul, embarcava com a turma da Gazeta nas noites desvairadas de Curitiba. Até hoje não tenho a menor ideia do que falavam Dalton e Raul, se é que chegaram a falar alguma coisa algum dia.

Minha última conversa com Dalton foi em julho de 1960 (vai fazer meio século) no Rio de Janeiro. Curitiba se transportava inteira nas férias de inverno para os hotéis da orla de Copacabana. Eu já estava com viagem marcada para uma bolsa de estudos em Paris. Nosso encontro foi nas imediações do Hotel Regente, Posto 6, para um almoço no lendário Restaurante Lucas (hoje metamorfoseado — uso Kafka de propósito — em Garota de Copacabana). Depois de consultar logamente o cardápio, Dalton pediu um prato de rins grelhados, especialidade da casa. Senti logo que era sua homenagem ao personagem principal de Ulisses, que no café da manhã do seu dia de glória — o Bloomsday, hoje comemorado pelo mundo inteiro — na verdade um dia comum, encara a iguaria. Reporto-me ao início do segundo capítulo, na tradução de Antônio Houaiss: "Leopold Bloom comia com gosto os órgãos internos de quadrúpedes e aves. Apreciava a sopa de miúdos de aves, moelas amendoadas, um coração assado recheado, fatias de fígado empanadas fritas, ovas de bacalhoa fritas. Mais do que tudo, gostava de rins de carneiro grelhados que davam ao seu palato um delicado sabor de tenuemente aromatizada urina." (Meu caro Dalton, é preciso amar Joyce de paixão para degustar este "sabor de tenuemente aromatizada urina"...)

Sutilmente, Dalton me passou o recado joyceano. Mas hoje eu lhe dou o troco salingeriano, depois de ler o seu último livro, Violetas e Pavões. A epígrafe das Nove Histórias de Salinger era um koan (charada) zen: "Conhe­­ce­­mos o som de duas mãos batendo palmas. Mas qual é o som de uma mão batendo palmas?" À página 101, no conto "Lábios Vermelhos de Paixão", Dalton escreve: "É a delícia de vê-la descruzar as pernas, antes mesmo de você pedir — o som da tua única mão que bate palmas?"

Raramente Dalton teorizou sobre sua obra. Por isso, cedo à tentação de transcrever o seu credo de autor exposto em mensagem ao júri do prêmio Portugal Telecom de 2007, quando conquistou o segundo lugar com Machão Não Ganha Flor:

"Só a obra interessa. O autor não vale o personagem. O conto é sempre melhor que o contista. Vampiro sim, de almas. Espião de corações solitários, escorpião de bote armado. Eis o contista. Só invente o vampiro que exista. Com sorte, você adivinha o que não sabe. Para escrever mil novos contos, a vida inteira é curta. Uma história nunca termina. Ela continua depois de você. Um escritor nunca se realiza. A obra é sempre inferior aos sonhos. Fazendo as contas percebe que negou o sonho, traiu a obra, cambiou a vida por nada. O melhor conto só se escreve com tua mão torta, teu avesso, teu coração danado. Todas as histórias, a mesma história, uma nova história. O conto não tem mais fim senão começo. Quem me dera o estilo do suicida em seu último bilhete."

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