A cultura viveu um ano de fortes emoções. Ao mesmo tempo em que teve sua casa maior, o MinC, desprestigiada pelo governo Temer logo no início de sua gestão, quando veio a ordem de reduzi-la a secretaria e abrigá-la encolhida sob o guarda-chuva do Ministério da Educação, o segmento cultural demonstrou uma força de mobilização sem precedentes. Nem Temer esperava tanto barulho. O mesmo ano em que a cultura desceu ao posto mais baixo desde os anos 1980 - o MinC foi criado pelo presidente José Sarney em 1985 - refletiu uma consciência reivindicatória poderosa. Mexer com a cultura não será mais um ato invisível depois de 2016.
Desgastado pelo bombardeio disparado contra sua medida em um país pós-impeachment ainda em chamas, Michel Temer foi obrigado a voltar duas casas e a retomar a existência do MinC. Depois de penar em busca de um nome que aceitasse conduzir a pasta ressuscitada, conseguiu um jovem de discurso conciliador chamado Marcelo Calero, um diplomata para quem a oposição e muitos artistas olharam torto. Enquanto a Polícia Federal investigava uma fraude de R$ 180 milhões de verbas conseguidas via Lei Rouanet para custear festas privadas para grandes empresas, Calero se reunia com lideranças de peso com o lenço branco em mãos. Começou a ganhar confiança e a dar sinais de reaproximação até eclodir mais um elemento-surpresa: Calero tinha caráter demais, não sabia brincar de política.
O Ministério da Cultura voltou às manchetes dos jornais no dia 18 de novembro, quando Calero pediu demissão acusando o então ministro da Secretaria de Governo, Geddel Vieira Lima, de tê-lo pressionado a liberar a construção de um arranha-céu em Salvador em uma área tombada pelo Iphan (Instituto do Patrimônio Histórico Nacional). Geddel havia comprado um apartamento no edifício - algo que, obviamente, julgava ser mais importante do que a preservação de uma área histórica. Calero disse não e não arredou o pé, mesmo sob pressão. Avisou Temer do pedido, mas não sentiu-se seguro. Então, lembrou-se do único bem que deveria ser inegociável a um homem, o próprio nome, e saiu de cena antes de sujar as mãos. Geddel caiu seis dias depois.
A cultura, essa filha rebelde e indomável, já havia causado problemas demais. Depois de ser pivô da maior cisão entre artistas e governo desde o final da ditadura, deveria, desta vez, parar em mãos que não oferecessem mais ao Planalto os inconvenientes riscos da surpresa. Mesmo sem uma política cultural definida e nenhuma experiência no setor, o aliado de Temer, Roberto Freire (PPS), que já havia defendido o encolhimento do modelo ministério para o de secretaria, aceitou a função analgésica de líder da pasta mais enferma.
“Fora Temer”
O plano-sequência cinematográfico que começa com a decisão de encolhimento do MinC e termina em um escândalo político com a derrubada de um ministro, sucessivo ao ambiente de indignação de parte majoritária de uma classe que não reconhece Temer como um líder legítimo, levanta a muralha mais alta. Mais forte do que a própria oposição de um PT em farrapos, ao qual resta apostar na corrosão das memórias, os artistas alinhados entoam “Fora Temer” em seus shows e fazem apresentações em espaços ocupados. Com o espírito bélico, Chico Buarque mandou retirar sua música Roda Viva da trilha sonora do programa de mesmo nome da TV Cultura depois de uma entrevista com o presidente. Antes da estreia da Bienal de Artes, em São Paulo, artistas exibiram faixas de “Fora Temer” no Parque do Ibirapuera.
O cinema mostrou suas armas em Cannes. Em maio, parte do elenco e o diretor de “Aquarius”, Kleber Mendonça Filho, protestaram durante a estreia do longa. “Um golpe ocorreu no Brasil” e “resistiremos” foram algumas das mensagens escritas nos cartazes. O filme considerado um dos melhores da temporada se tornou símbolo de resistência em um ano que, para a cultura, não termina no dia 31.
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