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 | Ilustração de Biel Carpenter/Acervo pessoal
| Foto: Ilustração de Biel Carpenter/Acervo pessoal

Ela é de 1925 e passou o último aniversário no hospital – foram mais de dois meses internada por causa de uma septicemia, um terço do tempo na UTI. Sofreu uma traqueostomia e agora tem uma peça de metal encaixada na garganta, com um buraco de um centímetro de diâmetro por onde respira.

Enquanto estava bem, conseguia falar e até cantar, desde que alguém tampasse o buraco de um centímetro de diâmetro. A voz saía estranha, rouca e pegajosa.

"Café com pão" foi uma das primeiras coisas que falou. Há dez dias, a lucidez se foi e ela não diz coisa com coisa, o tempo inteiro com um olhar desesperado e perdido.

Minha avó viveu sempre de acordo com aquilo em que acreditava. Suas crenças – religiosas, na maioria – não são as minhas, mas hoje admiro a tranquilidade com que ela encarava os problemas que surgiram (e não foram poucos).

Ela costumava dizer, em um tom de brincadeira que mascarava algo bastante sério, como "nesta vida" ela precisava compensar o que havia feito em "vidas anteriores". Foram dois casamentos com dois viúvos, nove enteados (cada qual com três e seis) e uma filha de sangue, no caso, minha mãe, do primeiro casamento. Meu avô biológico morreu quatro anos antes de eu nascer e ela se casou pela segunda vez com meu avô de criação, também viúvo (ele morreu há pouco mais de um mês, de câncer na próstata).

Numa outra "encarnação", minha avó dizia ter sido "uma mulher da vida" que tinha dado muitos filhos para adoção. Um dia, ela leu sobre um mecanismo circular usado em outros tempos em que os bebês recém-nascidos eram colocados em um nicho e o mecanismo girava para levar a criança para dentro de um convento ou de um mosteiro, abandonada pela mãe para ser adotada por religiosos. "Roda dos enjeitados" era o nome. A história a fascinava.

Outro dia, ela ficou sabendo que judeus expulsos de Portugal vieram ao Brasil e adotaram nomes de família inspirados em árvores. Assim surgiram Nogueira, Oliveira, Carvalho, Pinheiro, etc. Como o sobrenome dela se encaixava na história, ela na mesma hora passou a defender com orgulho sua "ascendência judaica". Não por acaso, minha avó, uma mulher com vocação incrível para suportar situações difíceis – "resiliência" é o termo que usam hoje –, nutria uma admiração sem tamanho pelo povo judeu, que o Holocausto transformou em um dos grandes mártires da História. Minha avó encarava os problemas com a determinação de alguém que se sente escolhido pelo Criador.

Olho para minha avó hoje, cheia de tubos e sondas, e não embarco no pensamento que arrisca surgir em situações assim – o de que é preciso "aproveitar a vida" porque "logo serei eu deitado ali cheio de tubos e sondas".

Estou assimilando o fim da minha avó – ela está me dando esse tempo. O legado dela é a disposição que persigo em mim para viver segundo minhas crenças, ainda que isso não tenha nada a ver com religião e eu tenha de sofrer muito por causa delas.

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