Além dos sete postes derrubados, outros ficaram retorcidos| Foto: Ivonaldo Alexandre/Gazeta do Povo

A lei da selva

Em meio a uma platéia de crianças que lotou o pequeno teatro do Espaço Pé no Palco, a repórter do Caderno G assistiu a uma apresentação da peça Caninos Brancos, uma adaptação da obra do escritor norte-americano Jack London, escrita e dirigida por Marcelo Munhoz e encenada pelos atores Alessandra Flores, Vinícius Mazzon e nove crianças e adolescentes da Vila das Torres e do Parolin.

A história do lobo criado na selva e que, para sobreviver, precisa se submeter ou igualar-se aos seus agressores, extrapola o palco ao se transformar na história de vida de cada um dos atores-mirins. Eles "entram em seus personagens" – para usar uma expressão das próprias crianças – com a fúria de quem deseja mudar a sua própria realidade, sem, no entanto, se deixar domesticar.

A peça encerra sua temporada neste sábado e domingo, às 16 horas, no Espaço Pé no Palco (R. João Negrão, 2.340) Ingressos a R$ 10 e R$ 5 (bônus ou uma lata de leite em pó, que será doada para o Clube de Mães da Vila das Torres). GGGG

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A julgar pelo elenco-mirim que participa da peça Caninos Brancos, em cartaz no Espaço Pé no Palco, há muito talento a ser aproveitado entre as crianças e jovens dos bairros mais pobres de Curitiba.

A dupla de cineastas Luciano Coelho e Marcelo Munhoz sabe bem disso e investe como pode nessas comunidades. Há três anos, eles criaram o projeto Olho Vivo, que oferece ao público em geral oficinas de realização de vídeo e interpretação para cinema e vídeo. Como forma de incluir a população pobre (normalmente à margem das iniciativas culturais), criaram o Projeto Minha Vila Filmo Eu, que desde 2005 oferece a mesma programação de cursos do Olho Vivo às crianças e adolescentes da Vila das Torres e do Parolin.

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A intenção é formar, com o amadurecimento do projeto, um núcleo artístico independente – ao estilo do grupo de teatro carioca Nós do Morro, formado há 20 anos na comunidade do Vidigal e que revelou atores talentosos como os jovens que participaram do filme Cidade de Deus, de Fernando Meirelles. "Queremos criar condições para que este núcleo, no futuro, possa andar com suas próprias pernas", conta Marcelo.

Diretor de teatro há 15 anos, ele coordena as oficinas de interpretação. Apesar da ênfase em cinema e vídeo, no semestre passado Marcelo decidiu montar um espetáculo com os alunos, "para oferecer a base teatral necessária para qualquer ator". Escolheu adaptar Caninos Brancos, romance do norte-americano Jack London, acima de tudo porque a história do lobo – o protagonista agredido pela fome, exclusão e violência, até a sua domesticação – pareceu-lhe a metáfora perfeita para a realidade de penúria vivida pelos atores-mirins.

A escolha foi acertada. Em poucas leituras do texto, as crianças demonstraram empatia com trajetória sofrida do animal e trataram de improvisar situações para a montagem baseadas em suas próprias experiências. Quem encarna o animal selvagem é Maila Camila, de 13 anos, cujo talento confirma sua pretensão "de ser atriz, assim que terminar todos os estudos".

Mas, não é só talento que sobra. Marcelo conta que nunca trabalhou com jovens tão envolvidos e responsáveis. "Já fizemos 20 apresentações. Essa rotina é cansativa, mas não tivemos nenhum único problema de atraso ou reclamação". Nem mesmo a seleção dos atores foi complicada. A última turma da oficina começou com 18 alunos. Mas, na época de ensaiar a peça, restaram apenas nove. "Foi um processo natural. A gente esperava crianças um pouco mais velhas, mas elas foram saindo porque tinham que trabalhar ou estudar", conta Munhoz.

O mais novo, Ben-Hur de Freitas Martins, tem 9 anos, é bem pequeno, magrinho e muito carinhoso (ele beija e abraça a repórter). Mas, quando entra no palco, transforma-se em dois malvadões. Com um chicote nas mãos, ele é Beleza, personagem que compra Caninos Brancos do índio Castor Cinza (vivido por Willian Coutinho Duarte, de 15 anos) para fazê-lo lutar em brigas de cães. Mais tarde, surge como a silhueta maligna de Tim House, um bandido de alta periculosidade que foge da prisão.

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O menino já foi protagonista de um curta-metragem realizado na oficina de realização de vídeo, coordenado por Luciano Coelho. O roteiro foi inspirado em um fato de sua vida: ele catava papel para ajudar a mãe; um dia, depois de juntar dinheiro, comprou um cavalo e, à noite, guardou-o na casa de um amigo. No dia seguinte, descobriu que o animal havia sido roubado. Hoje, Ben-Hur não cata mais papel – a mãe conseguiu um trabalho como vendedora de sorvete – e pode fazer o que mais gosta: brincar e estudar.

"O Agnaldo tem 12 anos. Ele já fez mais de 20 peças". Assim mesmo, na terceira pessoa do singular, é que se apresenta o furacão Agnaldo Ribas de Oliveira. Ele não deixa ninguém em paz, faz pose para o fotógrafo, micagem, fala alto e diz à repórter que quer ser chamado pelo nome artístico de Agnaldo Rayol – a despeito de já existir um cantor com este nome. Conta que começou a participar das oficinas de teatro incentivado pelo pai. "Ele dizia pra mim: ‘Isso vai marcar sua vida’", conta o menino, que apesar de gostar de atuar, quer mesmo é ser tenente.

O elenco (também formado por Ana Carolina Paulino, Jhenifer Chaurais, Lucas Corrêa de Lima, Lúcia dos Santos, Marta dos Santos) ensaiou a peça durante três meses, sob a orientação de Marcelo Munhoz e dos professores Alessandra Flores e Vinícius Mazzon. Os dois atores integram o elenco como personagens e narradores.

"No treinamento, procuramos fazer com que as crianças se mostrassem inteiras no palco. É uma alegria chegar ao ponto de contracenar com nossos alunos e vê-los com a coluna reta, dignos, atuando como queremos que eles sejam na vida", finaliza Alessandra. Palavras que só podem ser ditas por quem, como ela, viveu e aprendeu com a criançada.