Passo Fundo Último nome a ser confirmado para a 12.ª Jornada Nacional de Literatura, o escritor moçambicano Mia Couto diz ser um homem "recatado", principalmente quando se trata de eventos literários. Mas o autor de Terra Sonâmbula, recém-editado no Brasil, cedeu à insistência da coordenadora da jornada, Tânia Rösing, para comparecer à festa literária.
Mia Couto tinha um bom motivo para vir: o primeiro lugar no Prêmio Zaffari & Bourbon de Literatura, na forma de um cheque de R$ 100 mil, pelo livro O Outro Pé da Sereia, de 2006. No dia seguinte, o escritor foi informado de que é um dos finalistas do Portugal Telecom. "Sou muito pessimista em relação aos prêmios. Procuro não pensar neles. O prêmio é um acidente feliz", atenua.
O escritor acredita que a África é atualmente um dos "grandes centros de criação literária em língua portuguesa". É principalmente sobre a realidade africana e moçambicana que ele fala na entrevista concedida durante a Jornada de Passo Fundo.
O que esses prêmios podem representar para Moçambique?Mia Couto Moçambique é um país distante, que não tem laços. Tudo que der maior proximidade e visibilidade ao país pode ser importante. A imagem da África é muito mistificada, e isso tem que ser vencido pelos próprios africanos. É importante que, por via da criação literária, a África se posicione de uma maneira mais real e digna em relação ao resto do mundo.
Hoje, o que os moçambicanos em geral lêem?Literatura de língua portuguesa africana, que chega por via de Portugal. Essa é uma situação tipicamente colonial. Temos relações com países irmãos, como Angola e Cabo Verde, via Portugal. Mas Portugal cumpre bem a função de ser porta giratória para que as literaturas que se escreve em português na África possam ser publicadas e ir para o mundo. Cheguei ao Brasil por via de Portugal também.
Qual é o atual panorama literário da África de língua portuguesa, com escritores como você e José Agualusa alcançando repercussão internacional?Nós somos ainda só algumas figuras emergindo. A minha preocupação é que há uma literatura que não se pode resumir a três autores e ainda não é conhecida. Hoje, provavelmente, um dos grandes centros de criação literária em língua portuguesa está na África. Esse conhecimento tem que ser partilhado.
Como os livros estrangeiros chegam a Moçambique?Não traduzimos nada em Moçambique. Até cinco anos atrás, nós produzíamos 12 livros por ano. Fazíamos um livro por mês, nossos próprios autores. Agora crescemos um bocadinho. Provavelmente temos uma edição de 30 a 40 livros por ano, mas só publicamos o que é nosso. Vamos buscar as outras publicações no Brasil e Portugal.
Você começou escrevendo poesia, depois seguiu para a prosa. Como foi esse percurso?Acho que eu continuo na poesia. Essa classificação de gêneros foi inventada por alguém que não era escritor, certamente. Comecei na poesia no momento em que havia exaltação no país, eu fazia parte da Frente de Libertação de Moçambique e a poesia era uma espécie de ferramenta privilegiada para cantar o país sonhado, a exaltação da utopia. Depois, quando nós tivemos a independência, era importante ganhar raiz. Aí a prosa funcionou melhor como instrumento para ganhar uma ligação mais profunda com a terra.
Qual a importância da oralidade em Moçambique e na África, e de que maneira a tradição oral se relaciona com a literatura?Esse é o grande desafio, fazer com que a fronteira entre a escrita e oralidade seja repensada na África, uma vez que a oralidade é absolutamente dominante e não é a ausência da escrita. A oralidade é um sistema de pensamento. Não só está presente em Moçambique, mas comanda os processos de comunicação e de busca da interioridade. As pessoas pensam em função de histórias. É uma fonte de inspiração permanente que um escritor tem.
Além de escrever, você atua como biólogo. Como você concilia as duas atividades?De mal a pior (risos). Sou mau cientista. Para mim, ciência é só uma maneira de dar respostas a algumas coisas. Estou procurando a mesma coisa enquanto biólogo e escritor. Na África, é impossível que tu olhes para uma árvore simplesmente como um ser biológico. A árvore é, ao mesmo tempo, residência de espíritos, altar para cerimônias religiosas. Trabalho nessa zona de fronteira entre o mítico e o científico, a oralidade e a escrita, meu lado europeu e meu lado africano, entre a minha religião que não é nenhuma e essa outra religião africana que nem tem nome.
As décadas de guerra em Moçambique são determinantes na sua obra. De que maneira a guerra afetou a sua vida?Há um personagem em uma das minhas histórias que diz que "a guerra é uma cobra que usa os nossos próprios dentes para nos morder". Ela penetra no fundo de nossas almas e não se desaloja nunca. Vivi mais da metade da minha vida em guerra e acredito que outras nações vivem em guerra sem saber. Provavelmente, certas zonas do Brasil com criminalidade que são outras formas de guerra. Esse estado de intranqüilidade profunda permanece para sempre. Quando acabou a guerra, nós não acreditávamos que estávamos em paz. A paz era condição tão desejada que o nível de exigência nosso é baixo. Basta ter paz que já vivemos com alguma felicidade.
Para você, qual a função da literatura?De uma maneira radical, não tem função nenhuma. Essa seria uma maneira de responder um pouco malandra. Mas, de fato, uma das funções que eu encontro na literatura hoje em Moçambique é nos devolver uma memória de um tempo que não queremos visitar mais. Ninguém se recorda da guerra, ninguém se quer recordar. Há uma esponja que apagou aquele tempo de sofrimento. A literatura pode ser uma maneira de revisitar aquele tempo, porque nós temos o direito, temos que ter aquele tempo como nosso. E a literatura pode ser uma maneira, sem esse dedo duro apontando para culpas.
A jornalista viajou à convite da organização do evento