A aceitação da violência
Entrevista
David Mayeda, doutor em sociologia e história americana
Enquanto cursava a faculdade de sociologia na Califórnia, David Mayeda se considerava um bom wrestler. Mesmo depois que trocou o tatame pelos livros, continuou fã de lutas. Quando viu o MMA se tornar mais popular nos Estados Unidos, em 2005, ficou "viciado", assim como boa parte do mundo. "Era um fã espantado ao ver os diferentes estilos de luta como uma entidade coesa." Como também é um pesquisador preocupado, se indagava como um esporte de combate abrangente poderia impactar a sociedade. Sua pesquisa resultou no livro Fighting for Acceptance: Mixed Martial Artists and Violence in American Society, inédito no Brasil (na tradução, Lutando por Aceitação: Artes Marciais Mistas e Violência na Sociedade Americana). De Auckland, na Nova Zelândia, onde leciona, ele conversou com a Gazeta do Povo sobre a ascensão do esporte.
O MMA é um esporte originalmente maldito. Hoje, a visão da opinião pública o aceita melhor. O que causou essa mudança?
Mesmo antes do UFC, havia um movimento significativo para alterar as estruturas das regras e melhorar as medidas de segurança. Quando elas foram reforçadas, o UFC ganhou proeminência. Os críticos não podem negar que em lutas importantes do MMA nos Estados Unidos nunca houve uma morte. Houve ferimentos graves, como na maioria dos esportes de colisão, mas nada como o boxe, em que um punhado de lutadores morrem a cada ano. Além disso, a modalidade tem sido gerida por um bom trabalho de marketing, que a apresenta como um esporte.
Por que o MMA é um esporte tão atraente para milhões de pessoas em todo o mundo?
Lutar é simples. A maioria dos homens entende a luta como seu estado mais primário. O MMA é extremamente complexo, mas para o olho destreinado, parece básico. Ainda que as mulheres estejam se projetando em algumas organizações, o esporte é dominado pelos homens. Ele ressoa um senso de masculinidade violenta, tradicional. Os homens treinam MMA e se sentem como seus ancestrais, que sabiam lutar contra um tirano ou para proteger um ente querido, se precisassem.
O MMA incentiva a violência na sociedade?
Acho que o MMA não incentiva a violência tanto como a guerra, as decisões políticas que causam a miséria, e assim por diante. Gostaria de ver grandes organizações de MMA e as academias promoverem mais os valores tradicionais das artes marciais e também serem mais honestos sobre os perigos do esporte. No entanto, em geral, não vejo essa modalidade como uma instituição que promove a violência na sociedade.
Os defensores do MMA afirmam que o esporte recupera valores morais que já se perderam em outros esportes de alto rendimento. Você concorda?
Com lutadores de MMA mais sérios e treinadores, eu concordo: o esporte realmente faz isso. No entanto, como o Brasil sabe, os promotores amam lutadores como Chael Sonnen, que fala besteira, utilizando uma linguagem sexista e xenófoba. Estes lutadores geram um interesse generalizado, não pelas razões certas.
Aqui no Brasil, o MMA é uma febre e é visto pelas populações mais pobres como forma de promoção social...
Sugerir que o MMA é um meio de escapar da pobreza é um absurdo. Como qualquer outro esporte, apenas uma porcentagem muito pequena dos que tentam pode fazê-lo. O Brasil, claro, tem uma história rica do jiu-jítsu Gracie e tem campeões de MMA surpreendentes, como Anderson Silva e José Aldo. Mas seria um crime sugerir às crianças que coloquem esforços intensivos sobre o MMA com esperanças de se tornarem financeiramente seguras. Formação em MMA é bom, desde que os valores sociais corretos sejam ensinados. Mas promover o MMA como um caminho para sair da pobreza é socialmente irresponsável.
Fenômeno de mídia, MMA também cativa mulheres
Lucas Laranjeira, especial para a Gazeta do Povo
No mundo da porrada, a igualdade de gêneros. É cada vez mais comum nos bares de Curitiba um público atento aos eventos de MMA equilibrado entre homens e mulheres. Em um ambiente antes predominantemente masculino, é fácil presenciar belas moças que vão ao bar para se divertir e também assistir às lutas. De acordo com informações do canal pago Combate, elas já somam 25% dos telespectadores do esporte.
O recente interesse das mulheres pelo MMA reflete uma nova posição do gênero na sociedade, segundo Cloves Amorim, professor de psicologia da PUCPR. "A entrada da mulher nesse universo relativiza com a posição da mulher na sociedade hoje." Quem pensa que elas vão às exibições de lutas em bares apenas para acompanhar amigos ou namorados se engana. É o caso da estudante de direito Luisa Rodrigues, que frequenta esses eventos com amigas no intuito de acompanhar a competição no telão. "Gosto do UFC pelo fato de ter vários brasileiros. Além disso, acho bonito, gosto da plástica do movimento, da técnica dos lutadores", explica. Estética que também agrada à psicóloga Karin Cabral, que acompanha as lutas ao lado do namorado. "Gosto de observar a técnica, o preparo, o estilo de vida deles, a maneira como encaram a luta".
Fora a plasticidade dos combates, a produção dos eventos, a boa relação entre os lutadores e a adrenalina do local ajudam a encantar o público feminino, segundo Eduardo Almeida, diretor de marketing da Associação Paranaense de Lutas MMA. No entendimento de Almeida, os motivos que atraem homens e mulheres ao MMA são bem distintos. "Os homens gostam de ver o sangue, já as mulheres querem ver a performance", afirma.
A presença feminina na plateia se repete no número crescente de mulheres que treinam artes marciais, ema prática que combina defesa pessoal com condiconamento físico. "A maioria das mulheres começa a treinar porque vê no MMA uma atividade aeróbica diferente, mais dinâmica do que as tradicionais, que alia a perda de calorias com a prática da defesa pessoal", afirma Manuela Barros, que trabalha como ring girl em eventos de MMA no Paraná.
Cuidar do corpo e aprender a se defender não os únicos benefícios que as meninas encontram na luta. Para a educadora e lutadora de muay thai Mariana Hoffmann, a luta proporciona um ganho pessoal. "Fiz outros esportes, mas eu queria autodefesa e a possibilidade de aperfeiçoamento pessoal. Na arte marcial, você não tem inimigo, o seu inimigo são seus próprios medos."
Campeão de audiência
Números divulgados em janeiro deste ano mostram que o número de assinantes do canal pago Combate, que transmite o pay-per-view das lutas do UFC, cresceu 85% em relação a 2011. De acordo com o gerente do Bar Curityba, Ivan de Lima Nalevaiko, exibir lutas no estabelecimento já virou uma obrigação. "É algo em que vale a pena investir, principalmente quando o evento envolve um dos grandes lutadores brasileiros. Nesses dias, temos uma média de público de 300 pessoas".
Para Eduardo Almeida, o sucesso desse esporte no Brasil deve-se a um "voyeurismo social". "A sociedade reprimiu a agressividade no colégio e, assim, nos tornamos voyeurs de pessoas lutando. Aquilo que não podemos fazer, transferimos para o lutador."
A dinâmica da luta também ajuda a digerir o esporte com facilidade. "O fato de a luta ser rápida ajuda. O mau jogo de futebol vai durar 90 minutos, a luta ruim vai ter 15 minutos. Se a luta estiver amarrada, o juiz vai dar um jeito para que ela volte para a ação", explica Almeida.
A lona manchada de sangue orgulha. É a forma fluida de uma honra ancestral. Tatuada no chão na luta entre dois homens pela necessidade primitiva de provar quem é o melhor. O objetivo é neutralizar o adversário (nocauteá-lo) em um processo que poderia levá-lo à morte se não fosse interrompido. Tudo, é claro, dentro de um conjunto de regras rígidas, valores morais e estratégias de mercado revolucionárias.
Este combo de filosofia, esporte e negócio transformou o MMA (em inglês, mixed martial arts, ou artes marcias mistas, em português) no esporte que mais provoca paixões no século 21. Uma modalidade que possui uma relação atávica com o Brasil, em especial com Curitiba (leia mais na página ao lado). Graças a um grupo de lutadores brasileiros a modalidade surgiu, se aprimorou e se tornou a febre mundial que movimenta milhões de dólares e pessoas. E o país, definitivamente, parece ter mudado a maneira de encará-la.
Na última quinta-feira, por exemplo, a seleção brasileira de futebol enfrentou a velha rival Inglaterra, no histórico estádio de Wembley, em Londres. Jogo da volta do treinador Luiz Felipe Scolari, escolhido para salvar o projeto da Copa do Mundo em casa, que começa em menos de quinhentos dias.
Ao contrário do que ocorria em outros tempos, o jogo passou quase em branco. Pasmaceira nos bares, redes sociais e no medidor do Ibope.
No último dia 11 de novembro, o lutador brasileiro Junior Cigano enfrentou o americano Cain Velasquez na disputa pelo título mundial do Ultimate Fighting Championship (UFC), o maior campeonato da categoria. Para a luta, bares armaram transmissões especiais e amigos se reuniram fazendo churrasco enquanto a aguardavam. As redes sociais bombaram. A Rede Globo registrou a maior audiência de um evento esportivo naquele mês, justamente o das rodadas decisivas do Campeonato Brasileiro.
Não falte quem, apressado, conclua que o país do futebol parece estar se transformando também no país das lutas. Pode ser que ainda não. Como também não se pode dizer, sem correr o risco da ingenuidade, que o antes marginal e bárbaro MMA se transformou em dos esportes e entretenimentos preferidos de famílias brasileiras de classe média.
Basta ver o número de praticantes do esporte crescendo a cada dia nas academias. Mulheres, homens com mais de 50 anos e adolescentes (veja matéria ao lado). Uma das antenas culturais da nação para o bem e para o mal , o compositor Caetano Veloso foi "finalizado" pelo fascínio casca grossa das lutas. Em seu mais recente álbum, Abraçaço, Caê cita o nome de alguns dos principais atletas da atualidade e compara a lenda do MMA brasileiro a outros patrimônios culturais da raça, como o carnaval e a bossa nova. Ele não está só. A atriz e colunista Fernanda Torres, por exemplo, escreve seguidamente sobre o esporte. O ministro do Supremo Tribunal Federal Luis Fux é praticante e entusiasta, só para citar alguns exemplos.
Fetiche
Mesmo com a popularização dos torneios ainda há, contudo, discussões acadêmicas quanto às causas e consequências daquilo que pode ser chamado de "espetacularização da violência" nos eventos de MMA.
"A popularização se deve, em grande medida, ao fato de os promotores destes eventos terem conseguido transformar a violência em espetáculo. A violência é hipnótica, dificilmente ficamos indiferentes a ela", afirma Elton Frederick, mestre em ciência política pela PUCSP.
Para ele, a grande sacada de mercado dos eventos de MMA foi converter esse fetiche o sangue dos atletas poeticamente chamado de "suor vermelho" pelos praticantes em um produto consumível para o grande público.
A ascensão do esporte estaria mais relacionada a um fenômeno de consumo, à capacidade da sociedade de construir ou simplesmente reconhecer uma demanda por um produto que é, aparentemente, pouco aprazível. Para tanto, basta pensar que apesar da "febre" ser algo recente, o esporte não é. "Demorou muito para que o MMA fosse aceito como entretenimento. E, por mais paradoxal que isso possa parecer, sua popularização só foi possível a partir do momento em que houve uma moderação da violência, com o estabelecimento de limites e regras aos competidores."
Jogo duro
Mesmo assim, ainda há críticos (e políticos e religiosos) que tentam aliar o crescimento da modalidade a um retorno à barbárie, em que a violência é a única linguagem compreensível, uma volta àquilo que há de mais arcaico no homem. "Não se pode negar que há algo de grotesco nesses eventos. Mas merece reflexão a afirmação de que eles denotam o regresso a um estado primitivo ou uma negação da civilização", afirmou o professor de comunicação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e escritor Muniz Sodré ao Observatório da Imprensa.
Praticante de artes marciais, ele crê que a agressividade atribuída ao MMA decorre de uma falsa impressão dos primórdios do esporte, "quando não havia limites", antes que a modalidade passasse a ter regras claras. "Você vê dois sujeitos enormes, terríveis, se agredirem e depois se abraçarem. Um ajuda o outro a levantar. Então, é um jogo. É um jogo duro, mas é um jogo", defendeu.
Doutor em sociologia e história americana, o professor havaiano David Mayeda, um dos principais estudiosos do fenômeno MMA no mundo, afirma que a modalidade não pode ser vista como uma instituição que promove a violência na sociedade. "Eu acho que o esporte leva a violência social para uma outra escala, um grau menor. Um fã de MMA não briga na rua, não usa armas. Acho que o MMA não incentiva a violência tanto quanto a guerra e as decisões políticas que causam a miséria."
Curitiba é referência mundial da luta
Fernando Rudnick
O conceito é tão simples quanto lógico. Se toda luta começa em pé, leva vantagem o lutador que mais domina a técnica de combate em pé. Por mais inocente que talvez possa parecer, essa regra está diretamente atrelada ao sucesso de Curitiba no mundo das artes marciais mistas (MMA).
Não fosse o desenvolvimento do muay thai centenária arte marcial tailandesa na capital paranaense no final da década de 1970, a cidade celeiro de campeões como Anderson Silva, Wanderlei Silva e Maurício Shogun Rua não seria nem de longe a referência mundial que é hoje.
O estilo que privilegia golpes com as chamadas oito armas (punhos, cotovelos, joelhos, canelas e pés) foi introduzido no país por Nélio Borges, o Nélio Naja, justamente em Curitiba. Mesmo sem viajar à Tailândia, ele se apaixonou pelo esporte após aprender as noções básicas com um professor tailandês. Depois, passou a ensinar os movimentos no Círculo Militar e em sua academia, na Rua Dr. Carlos de Carvalho.
Naja, que já era faixa-preta em taekwondo, fez adaptações e acabou criando sua própria versão do boxe tailandês. "O muay thai curitibano", crava Fábio Noguchi, 46 anos, aluno de Nélio Naja em meados da década de 80. "Ali foi onde começou tudo. Mas pouca gente treinava, porque era meio rústico, sem proteção", emenda ele, que anos mais tarde deu a faixa-preta para um então jovem atleta chamado Anderson Silva.
"Lutadores que são tops hoje no UFC e eram no Pride [extinto evento japonês de vale-tudo] como Wanderlei, Anderson, Pelé, Shogun e vários outros, começaram com o muay thai. Isso deu experiência a eles na luta em pé, mais agressiva e completa", atesta Noguchi.
A era Chute Boxe
Com a excelência na trocação proporcionada pelo boxe tailandês, dois outros fatores foram fundamentais para que o cenário se tornasse propício para o fortalecimento do vale-tudo em Curitiba.
Assim como no Rio de Janeiro, berço do jiu-jítsu brasileiro, onde a acirrada rivalidade com praticantes de luta-livre resultou em um boom de popularidade e também de brigas , em Curitiba aconteceu algo semelhante na virada para os anos 1990. Os adversários, no entanto, eram praticantes da capoeira.
Pouco tempo depois, na segunda metade da década, enquanto a academia Chute Boxe despontava e revelava sua primeira geração de atletas, o vale-tudo ainda estava longe de ter as regras e a fiscalização atuais. Também foi nesse período que aconteceu a segunda crucial decisão para a capital se tornar uma fábrica de campeões.
"A gente fez uma fusão do muay thai com o jiu-jítsu, que é uma luta de chão. No nosso entendimento, isso foi perfeito para o MMA. Saber lutar de pé e se virar no chão era o ideal para o esporte", lembra Rudimar Fedrigo, líder da Chute Boxe, que formou uma das melhores equipes do mundo durante anos.
No início dos anos 2000, a rivalidade era com a Brazilian Top Team (BTT), do Rio. "E isso impulsionou ainda mais [o esporte], porque os próprios japoneses já queriam ver lutas de brasileiro da Chute Boxe contra brasileiro da BTT no Pride. Eles entendiam que existia a rivalidade. Sempre havia um respeito, uma cordialidade, mas a disputa muito grande sempre existiu", descreve Fedrigo.
Eleito o melhor técnico de MMA de 2012 pelo World MMA Awards, Rafael Cordeiro fez parte da história da Chute Boxe como lutador e treinador. Para ele, Curitiba não é só apenas a cidade do muay thai ou do MMA. O tempo a transformou na cidade da luta.
"Você fala de Curitiba no Japão e todo mundo conhece por causa da Chute Boxe. Fala de Curitiba nos Estados Unidos e a resposta é Wanderlei, Shogun, Anderson. Eles sabem que aqui é um polo de lutadores", conclui Cordeiro, que hoje ensina a luta em pé desenvolvida em Curitiba nos Estados Unidos.
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