O escritor Moacyr Scliar, de 70 anos, lança seu 75º livro| Foto: Priscila Forone/Arquivo/Gazeta do Povo
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É difícil encontrar um escritor como Moacyr Scliar. Do tipo que atende o telefone da casa a hora que for, fala tranqüilamente sobre qualquer coisa (vida, arte, alegrias, frustrações), pelo tempo que for necessário e, ao fim, ainda diz "Se tiver qualquer dúvida ou precisar de alguma coisa, é só ligar".

Aos 70 anos, ocupa a cadeira de número 31 na Academia Brasileira de Letras e é autor de 75 livros. O mais recente acaba de ser lançado. O Texto, ou: a Vida – Uma Trajetória Literária (Bertrand Brasil, 272 págs., R$ 39) traça, como indica o subtítulo, o percurso do autor nas letras e, de quebra, na vida.Em entrevista ao Caderno G, a ser publicada no próximo domingo (8) na Gazeta do Povo, o autor gaúcho falou sobre o sentido das palavras e o risco de viver olhando sempre para o passado.

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Nas respostas a seguir, exclusivas para o Caderno G Online, Scliar afirma que "não está em condições de 'cagar regras' para os outros".

Caderno G – Como o sr. decidiu que intercalaria memórias e textos ficcionais?Moacyr Scliar – Era uma coisa muito simples. A proposta da Bertrand era que eu fizesse uma antologia de contos. Um livrinho para o público jovem, para ser usado em escolas. A verdade é que eu já tenho várias antologias de contos, publicadas ao longo desses anos. Então me ocorreu fazer uma antologia de outros textos, de romances, crônicas, artigos. Quando fui reunindo esses textos, eu me dei conta que eles refaziam a minha trajetória. E me ocorreu a idéia de associar aos textos literários uma narrativa sobre as circunstâncias em que eles tinham surgido. Isso, inevitavelmente, implicou numa reflexão sobre o ato de criar, o ato de escrever. Foi brotando assim, da forma mais espontânea e, quando eu vi, tinha o texto completo.

O sr. fala sobre a experiência de escrever livros e textos para jornais. Hoje, acabou desenvolvendo preferência por algum deles?Eu continuo acreditando que o conto é o grande gênero literário. Em primeiro lugar, o conto é aquele que mais corresponde à necessidade instintiva que tem o ser humano – a de contar e ouvir histórias. Curtas como mitos, lendas, fábulas. As pessoas precisam disso. E precisam desde a infância e continuam precisando ao longo da vida. O conto é expressão literária dessa necessidade. Ele envolve um grau de dificuldade que não é pequeno. É muito dificil escrever um bom conto e, na minha experiência, ou ele nasce bom ou nasce ruim. Quando nasce ruim, não vejo outra alternativa a não ser esquecê-lo.

Foi difícil escolher os textos que o sr. cita no livro, como "Os Contistas"? O critério foi o da curiosidade histórica – o modo como a estória se encaixava na história?São textos que têm um significado especial para mim. Eu não fui ver quais eram os textos de mais repercussão entre leitores. Depende da minha avaliação como leitor das coisas que eu fiz. O Centauro no Jardim é um exemplo. É um livro de que gosto muito, que escrevi com um enorme prazer. Eu não podia parar de escrevê-lo de tanto que estava gostando daquilo. A gente se dá conta, a experiência mostra, que o prazer que o escritor tem pode se transmitir ao leitor. Ao passo que o texto escrito sem prazer, realmente, não vai mobilizar o leitor. O prazer do texto é fundamental. Isso contraria um pouco essa afirmação freqüente por parte de alguns escritores que escrever é um sofrimento. Eu nunca consegui sofrer escrevendo. Às vezes até me preocupo. Quem sabe isso acontece porque não sou um bom escritor? Mas, não adianta, eu só posso entender o escrever como uma coisa prazerosa.

O sr. fala sobre o receio de colocar "escritor" nas fichas de hotel. O que o define melhor: médico ou escritor?As duas coisas me definem. Eu não quis fazer isso (colocar "escritor" na ficha de hotel) e não poderia fazer isso. A satisfação que eu tinha da medicina era igual à que eu tinha na literatura. Mas diferente. Medicina não é um ato de criação. É uma outra coisa. Eu me criei num bairro pobre. Fui muito cedo motivado pelas desigualdades sociais. Era de uma família de esquerda, fui militante estudantil. Eu via na atividade medicina, sobretudo na saúde pública, uma forma de dar minha colaboração para a comunidade e o país em que a gente vive. A sensação de dever cumprido, no meu caso, sempre foi muito importante.

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Nesse contexto, houve uma experiência que o fulminasse com a idéia de ser escritor?Não. Teve situações ao contrário. Muitas vezes, tive dúvidas se devia ser escritor ou não. Uma delas ocorreu quando publiquei meu primeiro livro. Foi muito decepcionante. Era uma coletânea de histórias escritas na faculdade de medicina. Quando eu publiquei, naturalmente achava que aquilo era muito bom. Aí ocorreu uma coisa que nunca tinha sucedido antes, de repente, eu estava lendo um livro meu e avaliando com os olhos do leitor e não do autor. Esse distanciamento resultou numa avaliação que acabou sendo cruel. Até hoje tenho amigos que dizem que sou rigoroso demais com esse livro. O efeito foi tão decepcionante que eu decidi que não seria mais escritor, que pararia de escrever. Mas, quando eu vi, estava escrevendo. Eu tenho que me aceitar como escritor e como médico.

No livro, o sr. escreve: "Sempre contando histórias, Moacyr Scliar." Alguma vez contar histórias foi um problema?Às vezes, tu estás numa situação que te exige conexão com a realidade e aí o escape para a ficção pode ser meio problemático. Eu tive incidentes menores. Uma vez tive que ir para São Leopoldo, onde trabalhava como médico. No caminho, dirigindo, me ocorreu uma idéia para uma história. Eu fiquei tão empolgado, que continuei dirigindo e passei da cidade de São Leopoldo e tive que voltar vários quilômetros.

Hoje, o sr. ainda faz análise?Faço. Constantemente eu volto à análise. É uma coisa curiosa, eu estudei psicanálise na faculdade de medicina e sempre tive a noção – que, na verdade, nasce de Freud – que a análise é para ser feita até uma certa fase da vida. É melhor que a pessoa faça enquanto ainda é jovem porque o potencial de modificação do seu curso de vida é bem maior. No meu caso, agora, é uma atualização analítica. Não é mais aquela análise que fiz quando estava na faculdade de medicina, que foi um mergulho profundo na minha condição. Fui ajudado por ser de Porto Alegre, um centro psicanalítico importante. Minha geração toda passou pelo divã do analista e posso dizer que é uma experiência extremamente valiosa. Você vai ouvir de muitos escritores e artistas que relutam se analisar porque temem perder o instinto criativo na análise. As pessoas dizem assim: "Eu escrevo porque sou neurótico. Se eu deixar de ser neurótico, eu não vou escrever mais". Isso é um erro. O impulso criativo pode ter uma conotação neurótica, mas não é a neurose. É outra coisa. Freud foi um dos primeiros a se dar conta disso. Ele disse que o impulso criativo é "não-analisável". É uma coisa que a pessoa tem e vai manter com ou sem análise.

No início de carreira, o sr. buscou a opinião de escritores como Erico Verissimo. Hoje, o sr. sente que é uma referência para a nova geração? Não. Para dizer a verdade, sou uma pessoa modesta. Não sou daquelas que têm uma consciência muito grande de sua auto-importância. Até hoje, eu me considero, em certo grau, um aprendiz de escritor. Quando me chamam, até por brincadeira, de mestre, eu estranho. Não consigo me ver como mestre. Eu me vejo como um escritor que pode ensinar alguma coisa baseado na sua experiência, mas que não está em condições de, como diz a gíria, "cagar regras" para outros.