Quando foi originalmente lançada na Inglaterra, no fim de 2013, a autobiografia de uma das grandes vozes do nosso tempo foi recebida com um misto de fanfarra e estupefação. Era a primeira vez que Morrissey resolvia discorrer longamente sobre sua infância na cinza e violenta Manchester dos anos 60, sua formação musical influenciada pelo punk, sua sexualidade algo nebulosa, seu profundo desejo de cantar, a formação dos Smiths, as brigas que terminaram com a banda e uma prolífica carreira solo de 26 anos e 10 discos.
Mas ninguém entendeu a exigência do cantor de que Autobiography fosse lançado pelo selo Classics, guardachuva da editora Penguin onde estão abrigadas obras validadas por séculos de leitura: Os Irmãos Karamazov, Os Sofrimentos do Jovem Werther, Dom Quixote, Os Miseráveis e tantos outros. O atrevimento de nascer clássico foi rechaçado pela imprensa. A edição on-line do jornal The Telegraph disse que, ao agir desta forma, a Penguin destruiu sua reputação e levantou dúvidas sobre a capacidade de ser a guardiã do melhor da escrita e do conhecimento humano; o diário Guardian publicou uma sátira em formato de entrevista pingue-pongue em que o sujeito indefinido responsável pelas perguntas não sabia nem quem era Morrissey.
Foi uma atitude deliciosamente pretensiosa do homem que vociferou “a Rainha está morta” no auge da Era Margaret Thatcher, e em certa medida esperada – ele sempre atrela seus lançamentos a polêmicas. Os milhões de fãs que dançam até hoje “This Charming Man” em pistas enfumaçadas não se importaram, muito menos aqueles que vestem a sua face de messias em uma camiseta. Para estes e para todos os que choram ao ouvir “Asleep”, este foi o aperitivo de um livro há muito esperado.
Polêmicas à parte, Autobiography é uma ótima leitura, cheia de descrições vívidas e dramáticas, como se fosse uma das letras melancólicas do cantor escrita em 460 páginas. Seu quarto de pré-adolescente é o santuário contra uma desumana Manchester e a música, sua forma de existir no mundo. Entre quatro paredes, “caixas de compactos de 7 polegadas me explicam para um psiquiatra qualquer. Eu não tenho outra identidade e não desejo nenhuma”.
A obra de Morrissey, na versão em inglês, tem 480 pp., foi publicada pela Penguin Classics e está disponível em livrarias que trabalham com títulos importados, como a Cultura, por
R$ 44,90.
“The last of the famous
international playboys”
Ao se autonomear clássico, Autobiography não está manchando a causa literária, tão menos o nome da Penguin. Está, na verdade, percorrendo o caminho oposto, o de emprestar à música pop como um todo e individualmente ao seu autor a dignidade de uma obra maior. É muito gostoso identificar no texto situações que viriam a gerar a atmosfera de um disco ou composições de Morrissey. Por exemplo, a gramática da violência de um professor que chutava bolas mirando a barriga dos alunos ou a obrigação de que as crianças passassem o recreio abaixo de chuva em um pátio descoberto para que os mestres pudessem ter a sua folga remetem aos versos claustrofóbicos de “The Teachers Are Afraid of the Pupils”, primeira faixa de Southpaw Grammar (1993).
Uma das passagens mais bonitas é o relato dos primeiros ensaios dos Smiths, logo após o encontro com o talentoso guitarrista Johnny Marr: “O som dos Smiths dispara em progressão meteórica; bateria tipo uma bomba estourando, acordes explosivos, linhas de baixo combativas, e nisso tudo eu estou livre como um falcão para pintar o quadro como quero. É um presente de Jesus. Eu canto para os jovens dos subúrbios, e ‘Hand in Glove’ e ‘Still Ill’ ancoram quatro vidas unidas – quatro vidas que provavelmente não seriam ancoradas por qualquer outra razão”(1). O humor de Morrisey sai das trevas e fica radiante, a escrita se ilumina por algumas páginas.
O leitor também sorri nas legendas das fotos. Em um retrato de infância com sua irmã, lê-se: “Jackie e eu, em 1966, nos perguntando como poderíamos deixar o mundo melhor do que o encontramos”. Em uma imagem na qual o pai posa para a câmera com vários discos de Elvis Presley: “Pai, na Queen’s Square, com álbuns históricos para um álbum histórico” (2). No retrato de juventude de seu namorado, o fotógrafo de publicidade e artes Jake Walters, a legenda é: “Jake Walters adolescente: problema”.
Impasse
No Brasil, os direitos de publicação das memórias de Moz foram comprados pela Globo, que havia anunciado o lançamento para abril de 2014. O livro não foi publicado e, naquele mês, circulou a informação de que a editora estaria negociando diretamente com o cantor a liberação dos direitos, porque ele teria dito que não autorizaria mais a publicação da obra em outros idiomas. Até agora, os fãs brasileiros seguem à espera da bênção de Moz para ter acesso ao livro.
“Now my heart is full”
A relação afetiva com Walters é uma das grandes revelações do livro. Eternamente discreto a respeito da vida pessoal, Morrissey conta da noite em que foram apresentados em um restaurante de Londres. Ele deixou o lugar porque Jake comia um prato com carne; Jake, então, o seguiu até sua casa, tocou a campainha, “entrou e ficou por dois anos”. “Pela primeira vez na minha vida o eterno ‘eu’ vira ‘nós’”, escreve.
Sem explicação, este trecho foi cortado da edição americana, que também limou outras passagens da relação dos dois, além da foto de Walters citada acima. Rumores em fóruns de discussão de fãs na internet dão conta de que a edição inglesa em capa dura fez o mesmo.
Eleito em 2006 pelos espectadores da rede BBC como o segundo maior inglês vivo, Morrissey canta os amargos da vida com a entonação de poucos. Começou em uma banda pop, embalando corações de milhões de pessoas no mundo todo com um punhado de boas canções, e foi progressivamente se tornando um crooner. Pelo visto na sua estreia literária, também escreve como poucos. Autobiography já é um clássico. Tomara que escreva mais, muito mais.
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