Curitiba tem grupos camerísticos de altíssimo nível, que vêm despontando na série de Música de Câmara da Capela Santa Maria. Como ficou evidente no concerto que apresentou esta semana o trio formado por Jairo Wilkens (clarinete), Faisal Hussein (violoncelo) e Clenice Ortigara (piano).
Jairo Wilkens já é conhecido como clarinetista da Orquestra à Base de Sopro do Conservatório de MPB, e Faisal Hussein tem brilhado com a Orquestra de Câmara de Curitiba. Mas Clenice Ortigara tem feito mais o trabalho de bastidores, como pianista correpetidora da Camerata e professora da Escola de Música e Belas Artes (Embap). Terá nova chance de brilhar com o Requiem Alemão de Brahms, em novembro.
Nos recitais aos quais assistíamos como alunos da Embap, na década de 1990, Clenice era sempre a pianista mais interessante, vindo com Villa-Lobos, Gershwin e Piazzola, enquanto os outros só sabiam fazer Mozart e Beethoven.
Essa capacidade de articular um repertório diferente do trivial e de alto valor cultural foi o que primeiro atraiu no concerto do trio. Vê-los tocar levou a imaginar que seja um conjunto que tem anos de trabalho associado, tal o nível de entrosamento. Certamente o casal Ortigara-Wilkens já trabalha em conjunto há tempos, mas a formação em trio com Hussein estava estreando.
O programa que apresentaram teve todas as qualidades que se espera de um grande concerto: compositores de grande relevância, obras muito bem escolhidas, uma exploração profunda das possibilidades de cada instrumento e o máximo de sua interação no conjunto, tudo temperado com muita vivacidade rítmica e profundidade harmônica.
O Trio Opus 3 (1896), de Zemlinsky, revela que a tendência para superar o tonalismo não era exatamente um caminho natural da tradição germânica, como faz pensar a historiografia dominante. O compositor austríaco, que foi professor de Schoenberg, mostrou que muita coisa ainda se podia fazer em Ré menor, e o primeiro movimento fez um interessante jogo com a forma-sonata, abortando a reexposição logo após a reentrada do primeiro tema, e passando diretamente à coda. Chamou-me à atenção a vivacidade rítmica da peça, coisa difícil de ver em compositor austríaco.
Em seguida veio o Fantasy Trio (1969), do norte-americano Robert Muczynski. Compositor que ousou destoar da linguagem vanguardística padrão promovida pelo governo americano nos tempos da Guerra Fria, Muczynski insistiu na aproximação com a escrita jazzística, o que resultou numa obra tão bela quanto difícil de executar.
A Fantasia Concertante, de Villa-Lobos, deve ser colocada entre as principais obras do compositor brasileiro. Foi composta na sua fase mais madura, em 1953, mas só foi estreada postumamente em 1968, numa formação que tinha fagote ao invés do violoncelo. Aqui vemos o Villa-Lobos articulando da melhor forma possível as ousadias experimentais dos anos 1920 com o "populismo" que praticou na era Vargas. Aos 66 anos, Villa era um compositor clássico na melhor acepção do termo, e sabia equacionar com exatidão uma linguagem repleta de brasilidade, acessível ao público e profunda. Superando o seu pior defeito como compositor a prolixidade , a peça encontrou também uma exatidão na sua estrutura formal.
Para terminar, reforçando a característica crossover do programa escolhido, a Danzón (1998) do saxofonista e clarinetista cubano Paquito DRivera. Com uma seção de improviso para o clarinete, a peça mostrou também o quanto as danças afro-americanas são importantes no panorama musical do século 20.
Apesar do excelente nível dos músicos, e do alto interesse do repertório escolhido, bem como da boa divulgação do evento, o público na noite de quarta-feira foi muito pequeno. O auditório só não estava tão vazio pela presença de alunos e professores de um colégio, levados pela Fundação Cultural. Aliás, isso nos remete a uma outra questão importante em que Curitiba precisa avançar: a promoção de concertos, atividade para a qual temos músicos de qualidade, precisa se articular à formação de plateia e a políticas capazes de fazer chegar a música de alto nível a um público mais amplo.
O público que veio do colégio estava pela primeira vez na vida em uma sala de concertos, não sabia a etiqueta associada a este tipo de evento. Mas o desconforto que possa ter sido causado pelos ruídos dessa plateia estreante em concerto serviu para nos lembrar o caráter que devem ter os eventos promovidos por órgãos públicos, que não podem permanecer fechados para uma elite reduzida. Teremos chegado ao ideal quando os concertos puderem ser parte da vida natural dos colégios.
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