Antes de “Quelé - A voz da cor: Biografia de Clementina de Jesus”, que a Civilização Brasileira lança esta semana no Rio, o que mais se falava sobre a cantora de voz grave e rouca, conhecida por suas interpretações de “Marinheiro só” e “P.C.J.”, dizia respeito à sua origem humilde, ao trabalho como empregada doméstica em uma casa no Grajaú e ao início tardio, aos 63 anos, de uma carreira de grandes sucessos no samba e na música popular brasileira.
Movidos pela curiosidade e uma paixão comum pela cultura popular, o quarteto Janaína Marquesini, Luana Costa, Raquel Munhoz e Felipe Castro, estudantes de jornalismo da Universidade Metodista de São Bernardo do Campo, na Grande São Paulo, transformaram o que era apenas um trabalho de conclusão de curso em um livro que destaca a importância da artista originária de Valença, no sul do estado do Rio, para a preservação das tradições musicais das raízes afro-brasileiras.
“A princípio, a ideia era fazer um trabalho sobre o Tom Zé”, diz Castro, em uma mesa de bar na Vila Madalena, bairro boêmio de São Paulo. “Mas a faculdade vetou, porque havia muitos livros sobre a obra dele. Então, tinha que ser algo inédito.”
Foi Janaína que sugeriu aos colegas fazer o trabalho sobre Clementina de Jesus (1901-1987). Fã de “Canto dos escravos” (1982), a estudante havia conhecido o último álbum da cantora por meio de um amigo. Clementina o gravou quando tinha 81 anos, ao lado de Tia Doca e Geraldo Filme. Concluído em um mês e meio no Estúdio Eldorado, em São Paulo, o disco era uma compilação de cantos de negros escravizados, que tinha como base teórica o livro “O negro e o garimpo em Minas Gerais”, do linguista mineiro Aires da Mata Machado Filho.
“Domesticado para virar música acessível ao gosto dos consumidores de discos e símbolo da identidade nacional, o samba foi perdendo a ligação explícita que tinha com os batuques centro-africanos. Clementina foi o mais potente contraponto a esse processo.”
“A voz da Clementina é muito impactante. Não conhecia nada sobre ela. Fiquei tão impressionada que fui atrás de informações, mas deixei aquilo de lado por um tempo, até o trabalho de conclusão de curso. A faculdade ainda resistiu, achavam que a gente não ia conseguir desenvolver a história. Mas acabamos obtendo a autorização”, conta Janaína.
“Quelé, a voz da cor”
Felipe Castro, Janaína Marquesini, Luana Costa e Raquel Munhoz
Ed. Civilização Brasileira
384 páginas
R$ 49,90
Ao pesquisar sobre Clementina, os autores perceberam que grande parte das informações sobre ela eram posteriores a 1964, quando estreou o espetáculo “O menestrel”, com os jovens Elton Medeiros e Paulinho da Viola, parceria que seria repetida um ano depois no emblemático “Rosas de Ouro”. O relato mais repetido era sobre como o poeta, compositor e produtor Hermínio Bello de Carvalho a ouvira na Taberna da Glória, em uma comemoração do Dia de Nossa Senhora da Glória, e demorou mais de um ano para tomar coragem e convidá-la a cantar profissionalmente.
“A história de como nos aproximamos do Hermínio é bem parecida com a dele próprio com vários outros músicos. O Pixinguinha, por exemplo, o Hermínio disse ter perseguido por muito tempo até ele se dispor a falar. Foi assim que o convencemos: ‘Estamos fazendo o mesmo que você’”, disse Raquel, acrescentando que o produtor apelidou os quatro jovens estudantes de “pragas do Egito”.
Nada havia sobre a infância de Clementina em Valença, onde viveu com os pais, os escravos libertos Amélia Laura e Paulo Baptista dos Santos, até os 7 anos de idade. Ou sobre a mudança para o Rio, onde ainda pequena ganhou o apelido de Quelé, dado pelo barbeiro José, e as primeiras experiências como cantora e sambista, antes na Unidos do Riachuelo e depois na Portela. O grupo não apenas garimpou todos esses detalhes, como passou a limpo outros, como a data de nascimento correta da personagem, que grande parte das fontes aponta como sendo 1902.
Mas o resgate mais importante de “Quelé - A voz da cor” é do papel de Clementina na transmissão de uma cultura oral que estava fadada a desaparecer. Considerada pela cultura banto uma “mulúduri”, ou herdeira da ancestralidade, ela teria aprendido as canções de escravos escutando sua mãe lavar roupa na beira do córrego que passava nos fundos da casa da família. Essas músicas, dizem os autores, teriam sido aprendidas com os avós dela, Abraão e Tereza Mina, que teriam vindo do Forte de São João de Mina, no Golfo da Guiné, na África.
“Outra curiosidade que não está no livro, porque não tivemos tempo de checar, é um possível parentesco entre Clementina e Paulinho da Viola, cujos avós também são de Valença”, disse Janaína.
Segundo o historiador Luiz Antonio Simas, que assina a orelha do livro, Clementina foi importante para quebrar um processo de “desafricanização” do samba iniciado a partir dos anos 1930, pela indústria fonográfica e pelo Estado brasileiro: “Domesticado para virar música acessível ao gosto dos consumidores de discos e símbolo da identidade nacional, o samba foi perdendo a ligação explícita que tinha com os batuques centro-africanos. Clementina foi o mais potente contraponto a esse processo.”
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