No início do conto “Paisagem de Encosta”, de Haruki Murakami, tirado da coletânea “After The Quake” (inédita no Brasil), quando um dos personagens reluta em ir até a praia no meio da madrugada para acender uma fogueira e jogar conversa fora dizendo que não vê nada de tão especial em coletar gravetos e sentar ao redor do fogo, ele é repreendido por sua colega de quarto.
“E o que há de tão especial em ficar aqui ouvindo Pearl Jam? Nem música é.”
Ele responde dizendo que a banda tem 10 milhões de fãs espalhados pelo mundo.
“Ah, é? Pois saiba você que fogueiras tem tido fãs espalhados pelo mundo por 50 milhões de anos.” Ele concorda.
“E as pessoas vão continuar acendendo fogueiras muito tempo depois que o Pearl Jam já tiver desaparecido da face da terra.”
Então Keisuke, o pobre coitado que só queria ficar em casa ouvindo “Binaural” consegue encerrar a discussão: “A questão é, estou pouco me lixando com o que aconteceu a 50 milhões de anos atrás, ou tampouco com o que vai acontecer daqui a 50 milhões de anos. O que me interessa é o agora. Ponto”.
Ao vivo
O Pearl Jam realiza uma série de apresentações em território brasileiro. Na quarta-feira (11), a banda se apresentou em Porto Alegre. No sábado (14), o show será em São Paulo. Haverá ainda passagens por Brasília (dia 17), Belo Horizonte (20) e Rio de Janeiro (22).
O revide silencia a colega de Keisuke e no centro da questão está um tipo de resposta que só quem tem 16 anos consegue verbalizar, muito embora você leve 40 para realmente conseguir compreender.
Se você conseguiu passar os últimos 25 anos sem ouvir ao menos um punhado de canções do Pearl Jam é porque não se interessa por música. E se, como a personagem de Murakami, não enxerga nenhuma importância na banda para a história da música contemporânea é porque simplesmente não lê sobre música. Nada tem a ver com gostar ou não da banda, mas sim em entender a dinâmica camicase que eles estabeleceram dentro de um momento único em que a cultura popular estava prestes a ser tomada de assalto para sempre – os anos 90. E ao menos admitir que essa dinâmica exige um tipo de comprometimento difícil de encontrar. E manter. É fácil viver o momento quando se tem 16 anos. Não por duas décadas e meia.
Já é um alívio poder escrever sobre a banda com um certo distanciamento cronológico, sem as pressões midiáticas sobre aquele período e os fantasmas de seus mártires.
Para que o Pearl Jam pudesse existir, um sujeito chamado Andrew Wood teve de morrer de overdose de heroína. Ele era o vocalista da banda em que o baixista e guitarrista do PJ, Jeff Ament e Stone Gossard tocavam, a Mother Love Bone. Com a morte de Wood, eles se juntaram a outro guitarrista, Mike McCready e encontraram um vocalista chamado Eddie Vedder. Ponto. Corriam por fora. Lançaram o primeiro álbum, “Ten”, antes de “Nevermind”, do Nirvana, e todo o pastiche do grunge, mas foram vendidos no mesmo pacote como aproveitadores. Motivo aparente? Geografia, eram todos de Seattle. Motivo real? Manufaturar uma cena.
A dita cena conseguiu salvar o rock nos anos 90 mas cobrou um preço significativo. Ela implodiu. Todos os párias que haviam dado voz a uma geração inteira de adolescentes problemáticos caiu exatamente no clichê de excessos daquelas bandas que eles tão veementemente repudiavam e carreiras arruinaram-se uma a uma, num mar de separações, escândalos, overdoses e suicídios. Um verdadeiro freak show que visto em retrospecto é tão parte do legado quanto a música produzida na época.
Foi mais ou menos por aí que eles decidiram dar uma de J.D. Salinger e passaram a se esconder. Sabotar a própria carreira foi a saída encontrada pela banda para sobreviver durante aquele período. Impossível prever na época que seria também o segredo da longevidade.
E foi da noite para o dia que eles sumiram.
Como bom membro da Geração X, descobri o Pearl Jam aos 14 anos e ela se tornou a banda seminal da minha adolescência muito rápido. Quase toda minha educação musical veio do Pearl Jam. “Quase” porque também sofri muita influência familiar ainda criança, que não pude evitar.
Uma de minhas primeiras memórias musicais é de ouvir meu irmão mais velho escutando “Atmosphere”, do Joy Division, incontáveis vezes e, como dividíamos o mesmo quarto, de me pedir para cantar para seus amigos. De alguma maneira, ele achava graça em ver uma criança de 7 anos cantando “Don’t Walk Away, in Silence” enquanto eles debatiam se Ian Curtis havia se matado porque não aguentava mais a epilepsia ou por problemas conjugais. Cinco minutos depois, a discussão já era para decidir se o New Order seria uma banda melhor que o Joy Division.
Minha mãe era uma fã de Elvis e Elis Regina, mas pouco se ouvia da música deles na casa, mais falava-se da vida, ou melhor, da morte dos artistas – porque tiveram determinado fim sendo tão talentosos? Ela levou anos para me contar como foi que Elvis morreu exatamente. Preferia me contar sobre Graceland, Priscilla, como ele engordou antes de morrer e que, no dia de seu funeral, as floriculturas de Memphis venderam todas as flores da cidade.
Meus primos eram fanáticos por música e, quando eu tinha 10 anos, eles me sentavam ao lado de um toca-discos, me colocavam fones de ouvido (na época em que eles eram maiores que a cabeça de um recém-nascido) e me faziam ouvir determinados álbuns. “Presta atenção porque essa música tem três partes”, era “Bohemian Rhapsody”, do Queen, e eu adorei até ele emendar com: “É sobre vender a alma pro diabo”.
Ou então: “Escuta esse cara, ele é o melhor baterista de todos os tempos. Morreu sufocado pelo próprio vômito depois de beber 40 doses de vodka. Quarenta!” Era “Moby Dick” do Led Zeppelin, o infeliz era John Bonham e o que me marcava todas as vezes era a excitação mórbida que minha família usava para falar sobre seus artistas favoritos.
Sendo assim, a princípio eu nem considerei questionar se essa era a única maneira de consumir música ou não. Para mim, as duas coisas vinham atreladas, vida e obra, nessa ordem. E nas minhas primeiras tentativas de adquirir um gosto musical independente isso se fez evidente. Em 1989, quando o Guns N’ Roses era a banda mais perigosa do planeta, eu me deliciava em saber que “Mr. Brownstone” era sobre o consumo de heroína dos membros da banda e que a Michelle da canção “My Michelle” era uma drogada irrecuperável cujo pai era um ator pornô e a mãe havia morrido de overdose. Eu tinha 12 anos.
Quando a cena musical do noroeste americano estourou em 1991 eu já era um perito em escrutinar detalhes e fazer associações muito além da música.
Ouvi “Ten”, do Pearl Jam, uma semana após ter ouvido “Nevermind”, do Nirvana. Alguns dias mais tarde caiu na minha mão uma fita do Alice in Chains e outra do Soundgarden. A menina da loja de discos nos deixava passar o dia inteiro na cabine ouvindo o vinil do Temple of the Dog se a gente quisesse. Estavam todos hipnotizados. Pela primeira vez na vida milhares de adolescentes presenciavam um acontecimento cultural significativo do qual eles podiam participar.
Era difícil escolher uma banda favorita no meio de tudo aquilo, mas não acho que restou alguma dúvida depois de uma tarde em que, após conseguirmos uma fita VHS, vimos o Pearl Jam tocar no festival Pink Pop na Holanda onde Eddie Vedder subia numa das gruas de filmagem e pulava de mais de cinco metros de altura na multidão. Para alguém como eu, aquilo era um prato cheio. Sem falar na letra de “Alive”, no vídeo de “Jeremy”. Eram tantas coisas para pensar, “Então ele nunca conheceu o pai?” ou “Jeremy é uma historia real, aconteceu numa escola do Texas. Li numa entrevista”.
Cobain se matou logo em seguida e me dei conta de que nunca mais conseguiria ouvir sua música sem pensar no que ele havia feito. Do mesmo modo que penso em uma forca quando ouço Joy Division, num supositório quando falam da Elis Regina, numa privada quando tocam Elvis, no capeta quando alguém menciona o Queen e em vômito quando vejo algum moleque com uma camiseta do Led Zeppelin.
A fatalidade da cena era que superficialmente dava voz a uma geração – a dita Geração X de excluídos e menosprezados, ao mesmo tempo em que perdia o rumo dentro do circo armado pela mídia para ganhar em cima dela. Em retrospecto, quem podia imaginar que toda aquela raiva presente em tantas canções da época fazia par com tamanha ingenuidade?
E, com apenas dois discos nas costas, o Pearl Jam decidiu sumir. A partir de então não houve mais entrevistas ou videoclipes ou programas de TV ou premiações. Só os discos. Caso você quisesse saber algo sobre eles, teria que ouvir a música. Tudo se resumia a ela. Me parecia confuso.
Cobain se matou logo em seguida e me dei conta de que nunca mais conseguiria ouvir sua música sem pensar no que ele havia feito. Do mesmo modo que penso em uma forca quando ouço Joy Division, num supositório quando falam da Elis Regina, numa privada quando tocam Elvis, no capeta quando alguém menciona o Queen e em vômito quando vejo algum moleque com uma camiseta do Led Zeppelin.
É claro que consigo me lembrar da obra desses artistas, mas, em se tratando de associações, o que eu registro primeiro é tudo aquilo que não importa sobre eles, tudo aquilo que parece relevante mas que só atrapalha a visibilidade, a memorabilia intelectual. Eu havia me tornado um acumulador de lixo cultural.
Quando o terceiro álbum da banda saiu, “Vitalogy”, eu simplesmente não sabia o que pensar. Decidi não pensar em nada e apenas ouvir as canções. Foi uma experiência purificadora. Eu havia viajado para comprar a fita com meu melhor amigo (era difícil achar um lançamento desses na minha cidade), gastado tudo que tinha na empreitada, enfrentado uma chuva torrencial a viagem toda para poder chegar em casa e ouvir aquele disco. Não reconhecia a banda dos trabalhos anteriores nele, mas sentia o mesmo tipo de emoção e urgência.
A cada audição eu parecia me distanciar mais do modo como eu havia consumido música minha vida toda e me aproximava mais de um estado ideal de ouvinte, do tipo que consegue tirar proveito do momento em si, até que um belo dia me bateu. Foi exatamente aos 32 segundos de “Corduroy”, quando as guitarras estouram e Vedder vocifera: “The waiting drove me mad”, eu estava com um sorriso estampado no rosto, finalmente tinha aprendido que era assim que se escutava música.
Anos mais tarde fui descobrir que a neurociência cognitiva explica que quando ouvimos uma canção de que gostamos, há uma liberação de dopamina em frações de segundo que precedem o “auge” emocional da canção e logo em seguida sentimos um arrepio. Esse intervalo de segundos é chamado de período antecipatório.
Dentro daqueles 32 segundos de “Corduroy”, entre guitarras e voz, estava tudo que realmente importava. Nunca mais ouvi música do mesmo jeito. Passei o resto da vida em busca do tal “período antecipatório” em todas as outras bandas que eu ouvia. Sinto isso quando ouço “Theologians”, do Wilco, precisamente aos 2 minutos e 15 segundos, ou naquela paradinha aos 3’35’’ de “Violent Side”, de Neil Young & Crazy Horse. Devo isso ao Pearl Jam.
Disco após disco a banda defendeu sua posição e continuou lançando trabalhos por vezes aclamados como experimentais e agressivos e, por outras, achincalhados como menores e pouco inspirados.
Combateram o monopólio da vendagem de ingressos nos Estados Unidos, excursionaram como banda de apoio de Neil Young, contestaram o governo Bush ativamente durante os dois mandatos e acima de tudo conseguiram permanecer indivíduos e não caricaturas de um passado distante como outros tantos.
Pouco importa se o último disco não lembra em nada o primeiro. Por que deveria?
A verdade é que conseguiram atravessar as duas décadas e meia de carreira desenhando uma das trajetórias mais estranhas e imprevisíveis do rock, se auto-sabotando na mídia e lançando os discos que eles queriam ouvir ainda que isso significasse perder uma enxurrada de fãs.
Perderam um punhado considerável, mas ganharam respeito daqueles que persistiram, algo que vale mais. Percebi isso quando assisti a eles ao vivo pela primeira vez, em Portland, no Oregon (EUA). Fiquei chocado com o tipo de empatia que rolava entre o público e a banda.
Nem de longe me parecia um show de rock convencional. O baixista Jeff Ament subiu no palco com seu cachorro e Eddie Vedder disse que havia tomado o trem de Seattle para Portland algumas horas atrás enquanto servia vinho para quem estava nas primeiras fileiras. Todos aplaudiam e riam mas ninguém desmaiava ou gritava ensandecidamente.
E, mesmo com todo o clima informal, assim que os primeiros acordes foram ouvidos você podia sentir a sinergia. Mesmo assim achei que seria um show meio preguiçoso. Durou duas horas e quarenta. Eu olhava para os lados e via um bando de americanos pulando de alegria, algo nada comum. Imagine você: 18 mil pessoas recebendo uma liberação de dopamina coletivamente a cada três minutos.
Nunca mais me recuperei. Nem consegui parar.
Vinte e cinco anos se passaram desde que ouvi o Pearl Jam pela primeira vez, tenho quase 40 anos e hoje consigo ouvir a música deles de modo crítico e objetivo. Sei exatamente o que estou procurando e, se um disco não me oferece nenhuma canção que me arrepia, deixo pra lá. Nada pior que um fã acrítico.
Como o personagem do Murakami, o que me interessa na música é o agora. Foram eles que me ensinaram isso ao longo da vida. Estou pouco me lixando com o que aconteceu ou com o que vai acontecer.
Que se danem as fogueiras, as pessoas vão continuar ouvindo música muito tempo depois de elas se extinguirem.
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