Dois dias antes de morrer de câncer e um dia antes de completar 69 anos, David Bowie lançou o clipe de “Lazarus”. Acompanhando uma música cujas primeiras palavras são “olhe aqui para cima, estou no céu”, lá estava ele em uma cama hospitalar, os olhos vendados, sua letra anunciando a própria liberdade. Ninguém, a não ser os parentes próximos, fazia ideia de seu estado de saúde. E o anúncio da morte apenas ligou os pontos.
Morre lendário músico de rock David Bowie
O astro britânico de rock David Bowie morreu no domingo de câncer aos 69 anos
Leia a matéria completaCom um musical homônimo lançado há cerca de um mês, Bowie parecia mais vivo do que nunca. Vivo como sempre, para seus padrões alienígenas. Sua morte é um baque em várias esferas: muito além do status irrevogável de lenda, ele era um dos poucos artistas a não perder a mão nunca — seu último disco é a prova definitiva. Por isso, é difícil lamentar sua perda apenas por seu passado, mas também por seu futuro.
“Blackstar”, o disco e projeto final, assume-se pré-candidato a maior memento mori da história da música. Junta-se a “Donuts”, de J-Dilla, ou ao clipe de “Hurt”, de Johnny Cash: materiais que, cada qual à sua maneira, mergulham na morte com coragem estarrecedora. Nenhum deles, talvez, com tamanha engenhosidade, pois escondido, recluso, silencioso, David Bowie, o último personagem de si mesmo, enganou todo o mundo.
Tony Visconti, eterno produtor e voz oficial do músico inglês na Terra, já estabeleceu o disco como presente de despedida. Afinal, se Bowie teve sempre um passo à frente da arte, por que não o teria em relação à própria morte? Para isso, bastou tratá-la como mais de um de seus trabalhos.
Além do visualmente angustiante clipe de “Lazarus”, esse foi o primeiro disco sem sua face na capa. Uma decisão estranha, a essa altura da carreira. Após 18 meses vivendo com câncer, parece que Bowie deixou pistas de que estava, de fato, desaparecendo.
Além de excelente músico, Bowie era um cara gente boa
Leia a matéria completaSe o simbolismo em sua obra passa longe de ser novo, dessa vez foi absoluto. O foco minimalista na estrela negra, epítome icônica do músico que mais misturou popularidade e estranheza ao longo da história, passou a representá-lo com precisão poética. Por sua vez, o clipe da faixa-título, lançado em novembro, anunciava um ambiente ritualístico e sombrio — a caveira de um astronauta morto é o elemento menos estranho ali. Para completar, o álbum inteiro foi disponibilizado no YouTube.
Não poderíamos, no entanto, esquecer do Lázaro em si. Bowie, como reciclador dos outros e de si mesmo, resgatou o romance “O Homem que Caiu na Terra”, de Walter Tevis, cuja adaptação cinematográfica ele havia estrelado em 1976. O fez renascer, readaptando-o para um musical. Inesgotável, reutilizou a canção como epitáfio: o Lázaro bíblico pode ter demorado quatro dias para voltar à vida, mas Bowie já estava acostumado à mudança. Ele, afinal, transformou um câncer em música sem prazo de validade.
“Desse jeito ou de jeito algum, você sabe que eu serei livre”, cantou na própria “Lazarus”. Dito e feito: David Bowie escolheu ir a seu modo, encarando a morte como somente um ser humano cósmico conseguiria. A nós, cabe desfrutar sua criação derradeira.