Foi um choque cultural dos maiores que já teve: De um lado, toda a extravagância, com seu penteado bufante e dancinhas exuberantes, da imagem do principal grupo pop da Inglaterra, e, do outro, o Partido Comunista, com sua insistência severa na importância da conformidade.
Quando George Michael e Andrew Ridgeley fizeram sua turnê histórica na China em 1985, eles podem ter deixado muitos dos nativos perplexos, mas também tiveram uma influência duradoura num país que ainda estava em vias de superar o trauma da Revolução Cultural.
Cerca de 15.000 pessoas se amontoaram no Ginásio Popular em Beijing no dia 7 de abril, para assistirem ao primeiro grupo pop ocidental a visitar o país. Os relatos da imprensa da época descrevem como muitos na plateia não tinham certeza de como reagir – em parte porque as autoridades tinham uma profunda ambivalência em relação à história toda, e a polícia repetia que ninguém deveria levantar dos seus assentos. Um relato no site biography.com descreve o clima geral como uma mistura de alegria, confusão e paranoia.
Mas, em todo o país, uma jovem geração em processo de remover os grilhões da austeridade comunista via na dupla uma inspiração.
Espírito de rebelião
“Eu dançava ao som da música deles nas festas underground de disco e rock da minha escola de artes em Chongqing”, diz Rose Tang, que depois viria a se tornar líder estudantil durante os protestos pró-democracia da Praça de Tiananmen, em 1989. “A música do Wham! e seus penteados faziam sucesso entre os alunos de artes...”
Tang, que agora vive no Brooklyn, diz que a música do Wham! a ajudou a seguir o caminho do ativismo político. “A música foi fundamental para cultivar o nosso espírito de rebelião”, ela disse.
O gerente da banda, Simon Napier-Bell, havia passado, segundo relatos, 18 meses tentando persuadir as autoridades comunistas de que o país estava pronto para receber a cultura pop ocidental, conforme o país foi se abrindo para o mundo e tentava atrair investimentos estrangeiros. Em Beijing, porém, muitos na plateia eram ou membros do Partido Comunista ou parentes mais jovens de membros: para muitos na plateia, era a primeira vez que eles ouviam a música da banda.
Falta de compreensão mútua
Segundo um relatório da Embaixada Britânica publicado no The Guardian, Michael sofreu para fazer o público bater palmas no ritmo de “Club Tropicana”, recebendo em vez disso uma salva bem-educada de palmas. Havia, segundo decidiu o relatório, “uma certa falta de compreensão mútua”.
Mas alguns membros mais jovens da plateia dançaram, de fato – ou tentaram, melhor dizendo.
“Sempre que as pessoas levantavam para bater palma ou dançar, os policiais tentavam fazê-las sentar de volta”, disse Richard Hornik no Twitter, um ex-jornalista que assistiu ao show.
Em 2005, numa entrevista à BBC, Napier-Bell culpou a sua própria decisão de mandar um dançarino de break para o meio da plateia por essa situação tensa, o que aparentemente deixou as autoridades horrorizadas.
“No intervalo, eles anunciaram no alto-falante que ninguém podia levantar, todo mundo precisava assistir ao show inteiro sentado – o que foi 100% culpa minha. Aquilo acabou com o clima”.
O público do andar de baixo também achou que as câmeras de TV fossem câmeras da polícia secreta, diz ele. “Tinha umas 7.500 pessoas embaixo, intimidadas pelas luzes e pela polícia do lado de fora, e em cima tinha umas 7.500 pessoas ficando cada vez mais ensandecidas”.
Refrão alterado
Um vídeo de uma hora documenta a turnê: nele, a dupla visita a Grande Muralha, joga futebol, se reúne com oficiais do Partido Comunista – um vice-ministro lhes diz que também é músico e compositor e tem esperança de que a arte possa promover a amizade entre as nações – e acabaram indo parar numa recepção na Embaixada Britânica, onde parecem igualmente deslocados no meio da elite diplomática de classe alta e jogadora de críquete.
Eles são vistos com admiração pelos nativos, que vestem trajes maoístas azuis, verdes e cinzentos, e são elogiados pelo público do show, que descreveram o evento como “inspirador” e “algo meio romântico”, expressando com sinceridade um desejo de terem podido compreender melhor as letras.
Como consta na reportagem de 2015 de Celia Hatton para a BBC, o público também ganhou uma fita K7 de graça, com material original do Wham! de um lado e uma versão de uma cantora chinesa do outro, com as letras, diz ela, retocadas “a fim de lhes dar um teor comunista”.
Na versão chinesa de “Wake me up before you go go”, por exemplo, o refrão repete o título, mas altera o verso seguinte de modo a passar a mensagem: “As mulheres estão na mesma jornada e não ficarão para trás”.
Volume alto
Cheng Fanguyan, uma estrela em ascensão na Oriental Dance and Song Troupe de China, foi quem gravou as versões em chinês. “Foi a primeira vez que ouvimos música com um volume tão alto”, ela disse ao jornal Caixin Online, na segunda-feira. “A maior parte do público chinês não sabia como reagir a esse tipo de música e performance”.
No vídeo da canção “Freedom”, há cenas da dupla falando sobre o choque cultural que os seus anfitriões chineses tiveram, sobrepostas com outras imagens da turnê.
Um show posterior, mais ao sul, na cidade de Guangzhou, teve um sucesso maior: o sul da China era mais aberto politicamente e mais exposto à influência ocidental – mais familiarizado também com a música do Wham!
Numa entrevista para o Taipei Times, Napier-Bell diz que o show ajudou a atrair investimentos estrangeiros para a China, e alegou ter tido uma parcela do crédito pelo sucesso das reformas no país.
“No fim, todo mundo recebeu o que queria disso – o Wham! se tornou a maior e mais famosa banda do mundo, e os chineses ganharam um show que provava que eles estavam falando sério quando demonstraram um desejo de abertura”, diz ele.
Rock chinês
A visita do Wham! também pode ter inspirado a China a desenvolver uma música pop própria. O homem conhecido como o padrinho do rock chinês, Cui Jian, teria assistido ao show e aparecido na cena musical um ano depois.
Mas, depois que a banda fez as malas e foi embora, as autoridades em Chongqing sofreram ainda para lidar com o legado da turnê, segundo diz Tang, que é escritora, artista e ativista.
“O diretor da escola muitas vezes vinha até as nossas festas para desligar o som, com ordens de que evitássemos essa ‘poluição espiritual ocidental’”, diz Tang, que afirma que demorou anos até ela conseguir entender as letras de canções como “Careless Whisper” e “Freedom”.
Nas redes sociais chinesas, os usuários compartilharam na segunda-feira suas lembranças do Wham! como sendo deles a primeira fita K7 que já compraram na vida, como sua primeira lembrança da música pop inglesa e como a música favorita da sua geração.
Como escreveu um usuário, “Descanse em paz. Ele era tão jovem. Talvez Deus queira ouvir música também este ano”.
*Simon Denyer é chefe de escritório do The Washington Post na China, tendo servido também na Índia. Anteriormente foi chefe de escritório da Reuters em Washington, bem como na Índia e no Paquistão.
Tradução: Adriano Scandolara
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