Há poucas coisas que todo mundo no mundo da música sabe, ou acha que sabe, a respeito de Martha Argerich, a pianista de origem argentina que recebeu recentemente um Prêmio Kennedy.
Ela é reclusa, temperamental e imprevisível. Ela é incrivelmente bonita, com uma longa e grossa massa de cabelo – no passado negro, agora grisalho – e um sorriso fácil e radiante e, aos 75 anos, ela ainda usa a blusa camponesa e as calças de algodão de uma adolescente de 1968. E ela toca o piano brilhantemente, ferozmente e, talvez, melhor do que todo mundo mais na Terra.
Conseguir marcar uma entrevista com ela parece impossível. Dizem que só dá entrevistas raramente e com relutância. Para convencê-la a falar em 2008, a revista Gramophone convocou a ajuda do pianista Stephen Kovacevich, um dos três pais de suas três filhas, que dizem ser o grande amor de sua vida, embora eles tenham rompido pela última vez na década de 1970. Mesmo com a presença de Kovacevich, ela ficou fisicamente desconfortável quando o gravador foi ligado.
Ainda assim, quando um horário é eventualmente marcado e o número discado, lá está ela, no telefone da casa de sua filha mais velha, na Suíça, falando com uma melodiosa voz de menina, soando doce e natural e, ao fim e ao cabo, nada como uma formidável e reclusa gênia.
Mas, no fim das contas, viajar para os Estados Unidos para receber um Prêmio Kennedy também não é manter a imagem de alguém que não se importa com premiações.
“Foi minha filha”, ela diz. “Minha filha insistiu muito. E então (o violinista) Itzhak Perlman me telefonou e disse: ‘sabe, é muito divertido’. E então eu dei uma olhada nas pessoas que já tinham recebido e, é claro, me senti muito honrada. (...) Mas não entendo porque acho que não fiz muito nos Estados Unidos.”
Não muito, isto é, além de se apresentar com a maior parte das melhores orquestras do país: a Sinfônica de Boston, a Orquestra da Filadélfia, a Filarmônica de Nova York. Outras apresentações orquestrais nos Estados Unidos incluíram a gravação de um concerto com Mstislav Rostropovich e a Orquestra Sinfônica Nacional.
Melanoma maligno
Não muito, isto é, além de uma série de concertos, um destaque sendo o recital esgotado no Carnegie Hall em 2000 que marcou sua primeira apresentação solo nos Estados Unidos em quase 20 anos – depois que ela decidiu, no começo dos anos 1980, parar de se apresentar sozinha e tocar apenas com orquestras e apenas música de câmara. A apresentação foi um evento beneficente para levantar doações para o Instituto de Câncer John Wayne em Santa Monica, Califórnia, a quem ela atribui ter salvado sua vida quando ela foi acometida pela potencialmente fatal recorrência de um melanoma maligno em 1997.
“Tive o cuidado de fazer (o concerto) duas semanas antes do meus exames”, ela lembra, “porque estava com medo – se fizer meus exames e os resultados não forem bons, como conseguirei tocar?” (Os exames, felizmente, foram positivos.)
Antes da cerimônia do Prêmio Kennedy, a maior pianista do mundo, a artista a quem outros pianistas quase universalmente veneram em virtude de sua formidável técnica e sua instintiva musicalidade, estava “perplexa” a respeito de por que o está recebendo e, pior ainda, não sabia o que vestir.
“Estou uma bagunça, sério”, ela diz. “Tenho meus trajes de concerto e, além desses, não tenho ideia.” Há um conspiratório indício de riso em sua voz, como se ela reconhecesse a comicidade da situação, mas ela certamente não está brincando. “Estou muito preocupada a respeito da coisa toda.”
Argerich é uma genuína lenda viva do mundo da música clássica. Mas ela nunca tentou particularmente cultivar a imagem de uma. Ou, ao menos, não em termos convencionais.
Genialidade natural
A história de Martha Argerich é uma história sobre uma ferozmente natural genialidade. Argerich não consegue deixar de falar música – de internalizar uma composição e a apresentá-la com tamanha profundidade e alcance e emoção e risco que até mesmo não-aficionados ficam desconcertados. Ela tem uma memória fotográfica, capaz de reproduzir música perfeitamente após ouvir apenas uma execução. Desafios técnicos não apresentam qualquer problema; “Tenho uma queda por oitavas”, ela disse, rindo, em uma entrevista para a TV em 1972, a respeito de passagens como o trovejante encerramento do primeiro concerto para piano de Tchaikovsky, que provoca pesadelos de ansiedade na maioria dos pianistas.
A tocata de Schumann é para ser uma das peças mais difíceis do repertório para piano; Argerich, que adora particularmente Schumann, a usou por anos como aquecimento. (“Não mais”, ela diz e ri. “Agora não me aqueço. Apenas começo.”) Indo muito além da mera técnica está a maestria artística que subjaz a cada performance, fazendo com que você sinta que está ouvindo seu repertório amplamente familiar – Bach e Chopin, Prokofiev e Ravel – pela primeira vez.
“Apenas os maiores artistas são capazes de manter o frescor da descoberta com a profundidade a reflexão”, disse Daniel Barenboim, o condutor e pianista, em um e-mail recente enviado da Europa. “Martha Argerich é um deles. Desde o começo, ela não era uma virtuosa mecânica, apenas preocupada com destreza e velocidade. Ela as dominou também, é claro, mas sua criatividade a permitiu criar uma quantidade e uma qualidade de sons no piano muito singulares.”
Vida pessoal turbulenta
Mas a história de Argerich também é uma sobre alguém com dons sobre-humanos tentando encontrar um jeito de viver uma vida normal. Muitos músicos vivem uma vida de uma ordem monástica, se concentrando na disciplina da música. Argerich, ao contrário, parecia se esforçar para ser desorganizada.
Ela é tão propensa a cancelar apresentações, às vezes de última hora, que há tempos deixou de assinar contratos: organizadores que a querem têm de assumir o risco. E sua vida pessoal tem sido turbulenta. As três filhas de três homens são uma ilustração de uma vida repleta de relacionamentos; mais de uma vez ela estabeleceu autênticas comunas de jovens músicos e não-músicos que peregrinaram para dentro de suas grandes e caóticas casas.
Ao mesmo tempo, ela é ferozmente leal: dois daqueles três pais, Kovacevich e o condutor Charles Dutoit, permanecem amigos próximos. Assim como o pianista Nelson Freire, o violoncelista Mischa Maisky e o violinista Gidon Kremer – dois de seus mais constantes parceiros de câmara, com quem ela saiu em turnê e gravou por décadas – e Barenboim, que a conhece desde que eram ambos crianças prodígio na Argentina, sete décadas atrás.
“Não há ninguém hoje que eu conheça há tento tempo quanto Martha”, disse Barenboim. “Nosso relacionamento é baseado na música, é claro, mas também há um amor muito humano que nos conecta.”
Altos e baixos
As escolhas de vida de Argerich derivam em parte de seu temperamento. Ela parece naturalmente gostar de dormir até duas da tarde, gastar horas falando ao telefone ou assistindo à TV ou cercada de amigos, e praticar o piano, quando o faz, de madrugada. Em um documentário surpreendentemente revelador, “Martha Argerich – Meu Sangue” (2012), sua filha mais nova, Stéphanie Argerich (filha de Kovacevich), implacavelmente e afeiçoadamente mostra os altos e baixos de se viver com uma lenda: as crianças caindo no sono debaixo do piano; festas dançantes em frente à televisão; a atitude da mãe às vezes infantil, às vezes desdenhosa, especialmente em relação a coisas como levar as crianças à escola. (Sua filha do meio, Annie Dudoit, conta à câmera que frequentar a escola era, em seu lar, uma espécie de rebelião – e sua única exposição a regras e ordem.)
As escolhas de vida de Argerich foram atacadas por muitos – sua controladora mãe, já falecida, Juanita, bastante incluída. Mas essas escolhas também dizem respeito em parte a autopreservação: evidências concretas da rebelião de uma vida contra a crescente regulamentação e restrição de uma vida na música.
“Não sei porque (orquestras) precisam ter tanta certeza sobre o que vai acontecer em dois ou três anos”, ela diz. “Às vezes as pessoas perguntam sobre o que você vai fazer em 2019. Jacques (Thelen, agente de Argerich) responde: ‘ela nem sabe o que vai fazer mês que vem.’ É ridículo e não é normal.”
Alma de 40 anos
Pouco é normal a respeito da vida de Argerich. Quando criança em Buenos Aires, ela mostrou talento musical desde cedo e, incentivada por sua mãe e educada em casa por seu pai, estudou intensamente com um formidável pedagogo de origem italiana chamado Vincenzo Scaramuzza (que uma vez disse que Argerich podia ter seis anos, mas sua alma tinha 40).
Uma de suas duradouras memórias da infância é a de ouvir Claudio Arrau tocando o quarto concerto para piano de Beethoven, a música percorrendo seu corpo como eletricidade. “Ainda amo” Beethoven, ela diz agora. “Esse é um amor duradouro. Quero dizer, o amo mais do que qualquer coisa” – mais, até mesmo, do que Prokofiev e Ravel, a quem ela consistentemente se refere como seus “melhores amigos”, ou Schumann, “que me toca, tão pessoalmente. Quando toco alguns trechos, realmente fico em lágrimas.”
Mas Beethoven permanece no topo da lista. Você pode pensar que isso faria dela uma especialista em Beethoven; mas ela não apresentou muitas das 32 sonatas, embora sejam cânones do repertório para piano. Quanto ao quarto concerto, ela o ama tanto que – ao contrário do que alguém poderia esperar – ela nunca o tocou em público.
Ou será realmente essa a razão? “Isso é o que digo a mim mesma”, ela diz. “Disse isso a mim há muitos anos e fico repetindo. Agora, é válido.” E ri, entretida com as próprias palavras.
“O que você fez com sua vida?”
Juanita, sua mãe, assegurou que sua filha fosse apresentada a todo músico que viesse à cidade: o violinista Josef Szigeti, o pianista Walter Gieseking e outros dessa estirpe. Mas foi Friedrich Gulda, o incomum e brilhante pianista austríaco 11 anos mais velho que ela, que marcou Argerich mais profundamente. Para possibilitar que ela estudasse com ele, Juan Perón, então presidente da Argentina, arranjou empregos para seus pais na embaixada em Viena, e a família, inclusive o irmão mais novo de Argerich, Juan Manuel, se mudou quando Martha tinha 13 anos.
Gulda, cuja própria meta de vida de não se enquadrar em uma tradicional carreira de música clássica envolveu uma imersão no jazz, tratava o relacionamento deles mais como um encontro de mentes musicais brilhantes do que uma tradicional hierarquia pedagógica. Ele ficou impassível com a fama subsequente de Argerich e o caos pessoal que a cercou. Quando a encontrou anos mais tarde, de acordo com uma biografia de 2010 de Argerich escrita pelo jornalista francês Olivier Bellamy, ela lamentou: “o que você fez com sua vida?”
Embora Argerich sempre cite Gulda como uma grande influência, ela estudou com ele por apenas 18 meses. Sua carreira começou com uma explosão em 1957 quando, aos 16 anos, ganhou duas importantes competições de piano – a Busoni, na Itália, e a Competição Internacional de Genebra – consecutivamente, no intervalo de poucas semanas. A isso se seguiu uma série regular de concertos e louvores da crítica em uma vida itinerante para a qual ela, jovem e tímida, se sentia despreparada.
Depressão
Ela resistiu a gravar seu primeiro disco para a Deutsche Grammophon por algum tempo, apesar de o selo ter tomado a inédita medida de lhe dar um estipêndio mensal em contrapartida por ganhos futuros; ela finalmente o gravou em 1960. Incluindo uma performance fluída da “Jeux d’eau” de Ravel e uma interpretação de tirar o fôlego da Sexta Rapsódia Húngara de Liszt que encarna algo desse virtuoso compositor, assim como duas rapsódias de Brahms, que não está em seu panteão pessoal, o disco permanece um clássico.
E então Argerich interrompeu sua carreira. Depois de uma tentativa abortada de estudar com o lendário pianista italiano Arturo Benedetti Michelangeli, que lhe deu apenas quatro lições no intervalo de um ano e meio, ela foi a Nova York, com a esperança frustrada de encontrar seu ídolo Vladimir Horowitz e, eventualmente, caiu em depressão e pensou em deixar a música para sempre. Ela ficou grávida de um amigo, o compositor-condutor Robert Chen; casou-se com ele; então retornou à sua mãe controladora em Genebra, onde sua filha mais velha, Lyda, nasceu, em 1964. Com a ajuda do pianista e professor Stefan Askenase, ela se concentrou novamente em sua música e ganhou retumbantemente a competição Chopin em 1965, exibindo uma compreensão instintiva das nuances e forças desse mestre, e se recolocando no mapa de vez.
“Quantos anos ele tem?”
Sua vida pessoal permaneceu pedregosa. Ela perdeu a guarda de Lyda para Chen, agora seu ex-marido, alguns meses depois, e a viu apenas uma ou duas vezes até sua adolescência. Lyda é hoje, contra as probabilidades, próxima de sua mãe e suas irmãs, e mãe de dois dos seis netos de Argerich, um dos quais tocou com a avó no festival dela em Lugano no verão passado.
“Ele toca o piano realmente muito bem”, diz Argerich. “Tocamos a quatro mãos esse ano.” E, em resposta a uma questão, “Quantos anos ele tem?”, ela o chama, e a voz da criança responde, ao fundo, “Huit ans et demi” (oito e meio).
Argerich sempre toca acompanhada agora; ela nunca gostou da solidão de se apresentar solo em um palco de concerto, e por volta de 1981 simplesmente decidiu não fazer mais isso. Solo ou acompanhada, ela caminha para o meio do palco como alguém com tremenda pressa e mergulha imediatamente na música, frequentemente levantando-se assim que termina. Frequentemente dizem que ela toca como um homem, o que é para ser uma descrição de sua força e poder, mas o que compreensivelmente a aborrece.
“Quando fui estudar com Gulda, ele disse que eu parecia um hermafrodita”, ela conta sardonicamente. “Uma vez perguntaram a Gideon Kremer: ‘oh, você não está preocupado de tocar com Martha, já que ela toca com as mãos como um homem?’ Ele disse: ‘não, porque meu coração é como uma mulher.’”
“Envelhecer é muito estranho”
Hoje, Argerich tem dois festivais próprios – em Lugano e em Beppu, Japão. Suas parcerias artísticas continuam a levá-la em novas direções – este verão, ela tocou com a mezzo-soprano italiana Cecilia Bartoli. Recuperada do câncer, mergulhada novamente no núcleo de sua vida, Argerich tem estado tão ocupada que, diz, “não tenho muito tempo para pensar sobre o que realmente quero fazer.”
“É um período muito estranho”, ela devaneia. “Envelhecer é muito estranho. É como se você já tivesse tido tantas vidas diferentes. Acho que preciso de um pouco mais de tempo para entender, para sentir o que realmente quero fazer. Ao longo do tempo de que me resta.”
Tradução: Pedro de Castro
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