A música mais comentada da semana no Brasil é o funk cantado por um membro da facção criminosa “Família do Norte” (FDN) que celebra o massacre de 56 presos no presídio Anísio Jobim, em Manaus e afronta o poder estatal.
Um dos trechos da “letra” diz que “...nós aqui é pelo certo e não aguenta safadeza/Foi mídia no mundo todo arrancamos várias cabeças”.
Se em 1997, no disco “Sobrevivendo no Inferno”, os Racionais Mc’s cantaram em “Diário de um Detento”, a ação violenta do Estado no massacre do Carandiru do ponto de vista das vítimas, vinte anos depois, a situação mudou. O “funk da FDN” mostra a violência gerada pela ausência do Estado do ponto de vista dos algozes.
Ao contrário do clássico dos Racionais, a exaltação ao crime por seus próprios autores, ligados à facções criminosas com pouco apreço à vida, não tem conexão com a tradição antiga da música popular brasileira de cantar a vida fora da lei.
Apologia é crime
Reproduzir ou cantar o “funk da FDN” configura o crime de apologia a fato criminoso ou apologia a autor de crime previsto no art. 287 do Código Penal.
A pena é de detenção de três a seis meses ou multa.
Apologia ao crime é um delito contra a paz pública que pode ser cometido por qualquer pessoa penalmente responsável.
O crime se consuma no momento em que o autor faz publicações da apologia.
O “funk da FDN” está mais próximo dos hinos que celebram batalhas militares vitoriosas e pode ser analisado a partir da teoria que pesquisadores contemporâneos do direito chamam de “criminologia cultural”.
Segundo o jurista escocês Jock Young (1942-2013), um dos criadores do conceito, a criminologia cultural reflete o “tempo em que o criminoso aceita o perigo e os riscos de suas ações, ao invés de evita-los ou vê-los como infeliz consequência de seus atos, passa a desfrutá-los, a ponto de se afirmarem viciados na adrenalina do crime”.
Uma ode às atrocidades da FDN é, portanto, muito distante da quase inocente abordagem com que compositores brasileiros falaram de condutas criminosas e violência após observações do cotidiano social, nos últimos cem anos.
Ética da malandragem
Numa “linha evolutiva do crime”, dentro da MPB, algumas modinhas do inicio do século podem ser consideradas apologias ao crime, observa o desembargador federal Wladimir Passos de Freitas, do site Conjur.
Freitas explica que longo do tempo, os costumes e relações sociais mudaram e as condutas tidas como crime pela sociedade também. À música, coube registrar estas transformações.
“A música sempre exteriorizou aspectos ligados ao direito penal. E as referências foram se alterando à medida que o Brasil e o mundo mudavam”.
Nos anos 1940, por exemplo, a moda “Cabocla Tereza”, 1940, de Raul Torres e João Pacífico, fez muito sucesso em um Brasil ainda rural, ao narrar a história do sertanejo traído que se apresenta ao delegado para confessar o crime.
Nos anos 1950, o sambista Moreira da Silva tornou clássico o samba de breque “Na Subida do Morro”. O tema é o mesmo: adultério. No final, porém, quem morre não é a mulher, que trai e é perdoada, e sim o homem que a assediara.
Segundo Fabiano Augusto Martins Silveira, do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), o samba de Moreira ajudou a construir a “figura mítica do malandro e já se passa num país predominantemente urbano em que o negro e o pobre se encontravam em permanente estado de suspeição nas ações policiais”.
Na década seguinte, Jorge Benjor, em “Charles Anjo 45”, mostra a ausência do Estado nas comunidades cariocas. O morro era comandado por um líder criminoso, o tal Charles. Sua prisão é lamentada pelo povo que espera sua libertação para que a paz volte a reinar .
Já nos anos 1970, coube ao sambista Bezerra da Silva cantar uma peculiar “ética da malandragem”. Nela, o “favelado”, ainda que cometa delitos assume imagem positiva diante das injustiças sociais e policiais.
Segundo Martins Silveira, os malandros do samba de Bezerra “cuidavam da seu ambiente da família e território e tinham atributos positivos no ambiente criminoso (como lealdade, solidariedade e astúcia)”.
Durante a abertura política, nos anos 1980, os roqueiros dos Titãs, assumiram uma postura contestadora em relação ao estado em músicas como “Polícia” e “Estado Violência”.
Proibidão
A partir dos anos 1990, surge o “proibidão. Com as facilidades ao acesso a programas digitais de gravação rappers e funkeiros da periferia criaram letras contundentes em português sobre a realidade de suas próprias vidas. Neste movimento, recriaram no Brasil, a estética e temas do “gangsta rap” americano.
Para historiadora Luciana Worms, autora do livro “O Brasil ao Pé da Letra da Canção”, os “proibidões” são “crônicas do cotidiano das comunidades e não apologia a crime e à violência”.
“Este tipo de som - que é mais para Malcom X do que Luther King - é um movimento musical autêntico do povo, levado pelo povo. E faz uma análise que até pode parecer simples, mas que nada mais é que o retrato real da sociedade brasileira”.
Há, portanto, uma grande diferença em entre a crônica musicada de um “proibidão” e a confissão e defesa dos crimes cruéis das facções criminosas do “funk da FDN”.
Para o professor de direito Arcénio Francisco Cuco, da PUC-RS , os “símbolos usados por membros de uma subcultura criminal, como a música, fortalecem estes grupos”.
“Neste caso, tal como em outras formas de crime, o significado da criminalidade está no estilo das práticas coletivas e a consequência irônica é muitas vezes a ampliação do maior compromisso entre os membros do grupo”.
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