Fazia mais de 10 anos que Rolando Boldrin não lançava um disco e 20 que não se apresentava em lugares abertos ao público em São Paulo. Nesta quinta, 11, e sexta, 12, o cantador, compositor, ator, apresentador de TV e contador de causos estará na capital paulista iniciando as comemorações de seus 80 anos (a se completar em 22/10). “Serei eu, o violão e Deus”, brinca, fazendo trocadilho com uma de suas composições mais conhecidas. O roteiro tem canções do novo CD, “Lambendo a Colher” (Selo Sesc), intercaladas com causos e clássicos como as autorais “Eu, a Viola e Deus” e “Vide, Vida Marvada”, tema do programa “Sr. Brasil”, que comanda há 11 anos na TV Cultura.
Representante “tão íntimo da terra” (como proferiu o escritor gaúcho Erico Verissimo), o artista que começou a carreira ainda jovem em São Joaquim da Barra (interior de São Paulo, onde nasceu), mantém-se atento à produção de artistas novos e também aos veteranos que não têm espaço na mídia convencional.
Ator eventual, com passagens pelo teatro e por telenovelas, ele volta a atuar no cinema, no novo filme de Selton Mello, com lançamento previsto para 2017. Nesta entrevista, Boldrin fala do novo disco, critica a música sertaneja de alto consumo e lembra momentos importantes da carreira.
Nesse novo CD, você continua a “tirar o Brasil da gaveta”, como naquele seu projeto de 2006, buscando na memória raridades de Tom Jobim, Ary Barroso, Noel Rosa, Geraldo Vandré, além das suas. Interessante que “O Tal da Barata” não foi incluída nem na caixa com a obra completa de Noel. Ninguém gravou isso?
É inédita. No começo da carreira nos anos 1970, eu estava no restaurante Papai, na Avenida São João (em São Paulo), onde tinha um teatro de revista. Batendo papo com uma turminha estava um ator chamado Geraldo Gamboa. Ele cantarolou para mim essa música (“O Tal da Barata”), dizendo que Noel tinha feito sob encomenda para um ator de teatro de revista que queria fazer um número de travesti. Canto no show fazendo uns trejeitinhos de leve, porque Noel fez tudo com dupla intenção. A “baratinha” é aquele carro antigo em que os playbozinhos andavam por Copacabana vendo as meninas. Ele fez a brincadeira em cima disso.
Na canção “Moda do Invejoso”, você aborda o confronto entre a chamada “música de raiz” e o sertanejo urbanizado, hoje predominante, e que vem acontecendo há tempos. Você que começou como integrante de uma dupla caipira (Boy e Formiga) ainda adolescente como vê esse cenário atual?
Escrevi a letra em tom de brincadeira, mas vejo essa situação de maneira muito crítica, porque sempre combati essa coisa da influência às vezes perniciosa na música brasileira. Vem de muito longe isso e atingiu muito da década de 1950 para cá a música caipira tradicional, que era feita por Raul Torres, Alvarenga e Ranchinho, Tonico e Tinoco e tal. De repente, começaram a surgir aquelas duplas vestidas de faroeste, fazendo brincadeiras, virou música sertaneja de alto consumo e dá muito dinheiro. Esse lado foi muito negativo, no meu conceito. O tradicional seria Pena Branca & Xavantinho, esse tipo de música, que foi morrendo com isso. Acabaram com a música caipira verdadeira, por causa dessa enxurrada de sertanejo.
Agora, você continua firme com o “Sr. Brasil”, que preserva esse outro lado, e é um símbolo de resistência nesse sentido, não?
Estou há 11 anos com esse programa na Cultura, que começou na Globo, em 1981. Em 1980, fui convidado a fazer um programa de música sertaneja, mas indiquei a Inezita Barroso e o radialista Moraes Sarmento, porque o meu projeto era mostrar a música do Brasil inteiro. Agora, infelizmente, sou o único fazendo isso na televisão. Minha vontade era mostrar na televisão que a música brasileira não era só samba. Achava esse enfoque injusto, porque, culturalmente, o Brasil é muito rico, tem uma diversidade enorme de ritmos. Luiz Gonzaga e Jackson do Pandeiro provaram isso trazendo a música nordestina para o Sul.
É o trabalho mais importante em sua carreira?
Esse programa é a “menina dos olhos”, porque sabia que ia dar certo e todo mundo recusava. Nenhuma estação queria. Enganei a Globo. Eles compraram lebre por gato (inverto porque é muito melhor), achando que eu ia fazer um programa sertanejo desses comuns e fiz o “Som Brasil”. Há outros poucos programas musicais, mas com essa característica de cantar o Brasil com paixão, de mostrar artistas que não aparecem, muitos que cantam por aí afora, até em barzinho mesmo, não tem. É muita emoção o tempo todo.
Com a popularidade do programa e a escassez de espaço para uma imensidão de novos artistas que surgem o tempo todo, suponho que muita gente deva procurá-lo. Como é esse trabalho de triagem?
Os primeiros artistas que apareceram eu conhecia, porque curtia muito. Praticamente, lancei Almir Sater. Coloquei no meu primeiro programa. Também levei duplas que tinham se desmanchado, como Venâncio e Curumba, Ranchinho (que fazia dupla com Alvarenga, que tinha morrido). Fiz uma miscelânea, juntando mineiros, gaúchos, tudo. Com isso, o programa pegou e começou a chegar muito material. Ouvia cerca de 200 fitas por semana (naquele tempo era fita cassete), ia filtrando e escolhia por intuição, sem conhecer os artistas, só de gostar do jeito de o cara cantar, e não errava. Hoje, é uma bola de neve, dá para fazer quatro programas iguais.
Você já atuou no cinema. Não tem vontade de voltar a trabalhar como ator?
O programa me toma muito tempo. É difícil me dedicar a outra coisa. Agora, com exceção de novelas mexicanas de mau gosto, que fui obrigado a fazer porque era contratado da emissora, tudo o que fiz em 58 anos de carreira profissional foi com muito prazer. Os filmes foram poucos, mas brilhantes. Nunca fui ator de cinema e, de repente, logo na primeira vez, ganhei um prêmio pelo papel. Agora, gravei uma participação no novo de Selton Mello, “O Filme da Minha Vida”. Ele já tinha me convidado para participar de “O Palhaço”, mas não pude. Esse é baseado num romance do escritor chileno Antonio Skármeta (Um Pai de Cinema). Selton criou um personagem que não tinha no livro para eu interpretar. É um tipo enigmático, que vai perpassando a história.
Compositor escapa do saudosismo e mira nas preciosidades da música brasileira
Lamber a colher é uma imagem prazerosa, caseira, íntima, como quem saboreia um doce até se lambuzar, até o último bocado. Ao escolher um título como esse para seu novo álbum de canções, “Lambendo a Colher”, Rolando Boldrin quis passar justamente essa ideia. Há um misto de lembrança da juventude e sabor de novidade, mas como ele mesmo confirma, não há raspa de tacho de saudosismo. O símbolo que prevalece é o da preciosidade.
Desde o primeiro “disco grande” (como ele costuma chamar os LPs), lançado em 1974 (“O Cantadô”), Boldrin gravou mais de 170 canções, entre moda de viola, partido-alto, samba rural, capoeira, toada e outros ritmos. Lembra que Artur da Távola falou certa vez sobre seu programa de TV, que “o que não morre com modas e modismos moderno é”. O novo CD de Boldrin (que também vai sair em “disco grande”) é coerente com essa impressão do jornalista, escritor e radialista.
Das dez canções, há três de autoria dele, as inéditas “A Moda do Invejoso” e o samba “Maria Isabel”, e a regravação de “Mariana e o Trem de Ferro”, lançada em 1974. De Noel Rosa, além da inédita em disco “O Tal da Barata”, há outra cuja letra é atribuída a ele pelo parceiro Hervê Cordovil, Vila Isabel do Espaço. Cordovil, que dividiu alguns clássicos com o Poeta da Vila, contou para Boldrin há mais de 50 anos, que “recebeu” essa letra do ex-parceiro morto e quando a cantora Vera Maria gravou a canção em 1961, num disco de 78RPM, ele fez questão de colocar no selo do disco “letra psicografada de Noel Rosa, música de Hervê Cordovil”.
Buscar o lado obscuro do cancioneiro de compositores célebres é um dos fatores que contribuem para dar um ar de novidade. Não importa que as canções sejam antigas: pouca gente há de lembrar de “Isso Eu Não Faço”, um Tom Jobim da pré-bossa nova, “Canção Primeira”, de Geraldo Vandré, e “Quem Me Compreende”, de Ary Barroso e Bernardino Vivas. Essa nem Boldrin sabia de quem era. “Aprendi com 16 anos, fazendo serenata. Aquilo ficou na minha cabeça. Nem sabia que era de Ary”, conta Boldrin. Outra raridade, “De Maracangalha Chega” (Dunga) é uma resposta bem-humorada ao clássico de Dorival Caymmi. A mais conhecida é a que encerra o disco, “Romance de Uma Caveira”, clássico de Alvarenga e Ranchinho em parceria com Chiquinho Sales.
Algumas dessas canções, ele já vinha interpretando vez ou outra em seus programas. Porém, embora a viola fale alto em seu peito humano, o cantador optou por arranjos que contrastam com esse padrão. Em “Moda do Invejoso”, ele canta acompanhado apenas do piano de Nelson Ayres (também o arranjador) e do da flauta de Teco Cardoso. “Canção Primeira” só tem o violão de Luca Bugarini. As demais foram arranjadas por Edson Alves. Entre os músicos que o acompanham, há nomes como Proveta (clarineta e sax), Edmilson Capelupe (violão de sete cordas), Milton Mori (cavaquinho e bandolim) e Jorginho Neto (trombone). É um bela síntese da bandeira levantada por Boldrin nessa longa estrada da arte musical brasileira - que, por ele, está longe de chegar ao ponto final.
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