Arianna Warsaw-Fan durante apresentação| Foto: /Divulgação

Há um sentimento que às vezes me dá, que não tem nome e se manifesta como uma sensação subindo e crescendo na parte de cima do peito e atrás dos olhos. Hoje, se me pedissem para descrevê-lo, eu diria que é o que eu sinto quando entro numa antiga catedral ou olho para o meu marido. É algo que desperta ao mesmo tempo humildade e exaltação – uma mistura de gratidão e deslumbramento. Mas, quando eu era criança, eu o conhecia apenas como a sensação que me dava ao ouvir ao “Trio Arquiduque” de Beethoven ou a ária “Nessun Dorma” de Puccini ou qualquer outra das minhas peças de música clássica favoritas. Foi o que me fez ser violinista.

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A primeira vez que lembro de ter sentido isso foi ao escutar a Sonata de Violino em Lá Maior de Brahms. Eu tinha apenas 6 anos de idade à época, mas mesmo com as reservas limitadas no meu banco emocional, o último movimento da peça, com sua nobreza e expressividade, me causou uma comoção profunda. Os compassos de abertura conjuravam a cena mais linda e pungente que a minha cabeça inexperiente poderia inventar: a de uma mulher do século 19, de espartilho e joias, de aspecto impecável e expressão composta, olhando para cima e respirando, meio irregularmente, enquanto via alguém chegando do outro lado da sala, revelando por um momento o fervor e a intensidade que ardiam debaixo da sua fachada plácida. E, porque eu fui criada com filmes de época em preto e branco, ela também era casada com um conde maligno, e o homem com quem ela partilhava seu amor secreto e proibido era muitíssimo hábil no manejo da espada.

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Eu muitas vezes associava esse tipo de narrativa fantástica às peças que eu tocava. A música clássica era, para mim, uma biblioteca infinita de histórias emocionantes que eu podia ler de qualquer jeito que eu quisesse. Durante anos, toquei só por puro entusiasmo, motivada apenas pelo desejo de descobrir novas peças e me refestelar em sua magnificência. Não demorou, porém, para eu começar a demonstrar potencial, e logo o foco dos meus estudos foi deixando de ser a exploração criativa e passou para o domínio técnico – um processo que viria a quase destruir meu amor pela música.

Aos 11 anos, eu passei a ter aula com uma professora nova em Boston, que havia sido recomendada aos meus pais por um amigo da família que sabia como era a cena do conservatório pré-universitário. Ela tinha fama já de capataz e de treinadora de técnicas impecáveis. Após diagnosticar várias fraquezas na posição da minha mão, ela me fez parar de tocar peças de verdade e me indicou uma série de estudos e exercícios – o equivalente para os dedos de agachamentos e “slam ball” – para praticar no lugar. Seguiram-se horas tediosas de minúcias obsessivas. Após quase um ano, tive permissão para voltar aos meus amados concertos e sonatas, mas minha percepção deles havia mudado. Não eram mais fantasias sem palavras ou expressões do sublime, mas compostos de exercícios, que deveriam ser praticados com a mesma atenção clínica aos detalhes.

“Momento do champanhe”

Enquanto estivesse fazendo progresso, no entanto, eu não ficava infeliz. Não ficava feliz também, mas tinha sede de aprender, que era quase o suficiente. É claro que a ideia de pegar o violino todos os dias já não me enchia mais com a alegria ingênua de quando eu era mais nova, mas um dia eu faria a minha estreia no Carnegie Hall e todo mundo aplaudiria de pé, e esse “momento do champanhe”, como meu pai chamava, compensaria pela toda a felicidade que eu havia sacrificado nos anos anteriores.

Só que esse momento nunca chegou.

Na minha infância, constrangedoramente, eu acreditava que tudo que eu precisava fazer era praticar, afiar a minha técnica e me manter no caminho – e então as plateias fariam fila nas ruas para me escutarem. Mas, por volta do fim do período que passei na Juilliard, percebi que eu não estava entre os eleitos. Como muitos dos meus colegas, eu sempre quis ser solista – mas nunca consegui me destacar nas competições internacionais, e toda as vezes em que achei que estava chegando a minha hora acabaram em decepção. Além disso, o domínio técnico que conquistei ao longo dos meus estudos havia me privado de boa parte da minha expressividade, e eu não tinha mais convicção de que eu tinha qualquer coisa de digna a dizer.

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Descartável

Sem essa crença de que eu teria utilidade para o mundo ou de que a minha voz tinha uma importância única, eu perdi minha ambição. Fiquei desiludida e ressentida com o que parecia ser o fato de que eu era descartável. Como se em resposta à minha tristeza, uma nova e inesperada oportunidade logo surgiu. Pouco após a formatura, fui chamada para participar da turnê de um artista bem conhecido que trabalhava com uma mescla de estilos, como uma convidada especial tocando uma combinação de jazz, soft rock e música de trilha sonora de filme. Eu sabia que precisava de uma mudança e aceitei o convite sem hesitar.

Por um tempo, essa experiência foi inebriante. Mas, conforme o sentimento inicial de novidade foi passando, comecei a perceber que eu não tinha conseguido escapar dos meus sentimentos de inutilidade. Eu tinha um trabalho regular então, mas o meu papel era, em sua maior parte, decorativo. Eu tocava uma meia dúzia de músicas a cada noite, mas, diferente dos outros na turnê, eu não sabia improvisar. Então, enquanto o resto da banda estava lá, fazendo um show único, de duas horas e meia de pura autenticidade, convicção e entrega, eu ficava lendo no camarim ou me esforçando ao máximo para executar adequadamente um roteiro de adornos que haviam sido compostos por outra pessoa, numa tentativa de fazer com que eles parecessem parte do mesmo show.

O ponto mais baixo para mim foi quando tive uma conversa com alguém da plateia que me revelou, muito confuso, achar que eu havia sido contratada como um tipo de dançarina encarregada de tocar violino de mentirinha e me balançar no ritmo da música. Não foi a confusão que me irritou tanto quanto o fato de que ele havia tocado numa verdade perturbadora: Eu me sentia uma fraude.

Depois, durante uma viagem a Berlim, eu conheci o homem que se tornaria o meu marido, Stephan, e de repente minha vida tinha direção de novo. Conforme foi se suavizando a minha visão sobre o mundo, a amargura que eu sentia em relação à indústria musical começou a desaparecer. Mas a impenetrabilidade que a acompanhava começou a desaparecer também, e logo fui tomada de assalto por uma multidão de outras emoções que eram ainda mais dolorosas.

Eu me sentia envergonhada das tendências competitivas que o violino despertava em mim. Senti nostalgia da época em que achava que eu tinha um propósito. E me entristecia o fato de que os meus anos de prática rigorosa e aperfeiçoamento técnico, que deveriam prestar tributo ao meu amor à música, haviam, em vez disso, apagado esse sentimento.

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Último concerto

Desisti da minha carreira e passei meses a fio sem pegar no instrumento. Eu tinha algumas obrigações para cumprir ainda, mas entre essas apresentações, feitas sem qualquer alegria, eu não tocava mais. Por mais que odiasse ver o estojo do meu violino juntando poeira, eu me sentia mais leve e mais em paz quando passava longos períodos sem encostar nele. Comecei a recusar todas as oportunidades de apresentação futuras, e logo me mudei para Berlim, onde eu estava feliz de me ver longe da maioria dos meus contatos profissionais.

Ainda assim, me entristecia um pouco pensar que eu podia muito bem já ter tocado o meu último concerto sem ter me dado conta. Por isso, no começo deste ano, quando uma conhecida minha – uma pianista que eu conhecia dos Estados Unidos – me pediu para tocar um concerto particular com ela em Berlim, eu aceitei. O dinheiro não era dos melhores, e eu sabia que seria sofrido entrar em forma de novo, mas seria apenas uma reunião particular sem quaisquer críticos ou curadores ou VIPs que “poderiam ser úteis um dia”.

A princípio, tudo foi bem devagar. Meus dedos estavam fracos depois de meses sem uso, e eu fiquei frustrada, porque não parecia eu mesma tocando. Após alguns dias, porém, minha memória muscular começou a voltar, e, dentro de um mês, minha técnica estava plenamente restaurada. Então a pianista fez uma alteração de última hora no programa. Iríamos tocar o Lá Maior de Brahms.

Isso fez eu me sentir frágil, de algum modo, por tocar uma peça que um dia já significou tanto para mim, e criei o hábito de assistir Netflix enquanto praticava – “Grand Hotel”, “Gossip Girl”, qualquer coisa que fosse bonitinha e me distraísse – para me defender da onda de emoções que ameaçava me derrubar. Mas, quando chegou a hora de tocar no concerto, eu precisava dar a cara a tapa.

Enquanto assumi minha posição na frente do piano, lembrei de ter ficado olhando os rostos da plateia e percebido que algumas pessoas lá estavam prestes a ouvir Brahms pela primeira vez, assim como já havia acontecido comigo. O leve, mas inegável, frisson de empolgação que despontou no meu peito – por tudo aquilo que eles estavam prestes a sentir – rapidamente deu lugar a uma sensação indistinta de luto por tudo aquilo que eu tinha perdido. Nunca poderei desfazer minhas horas de dissecação e análise e treinamento, ou o estrago que elas causaram. Nunca poderei voltar à época anterior a isso, quando Brahms inspirava em mim tais narrativas fantásticas de condessas e espadachins e amores proibidos.

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Mas, conforme começamos a tocar, eu senti algo mudando dentro de mim. De repente, os meses de estranhamento e ressentimento e tristeza e confusão e a incerteza quanto ao futuro como violinista se tornaram parte de uma nova história. Não era o mesmo tipo de história que eu inventava quando era criança. Era mais sombria e mais complicada do que qualquer coisa que eu tivesse conjurado na época – tinha até algo de elegíaco nisso. Mas me fez sentir uma nostalgia em Brahms que eu jamais tinha ouvido antes. A música soava diferente agora. Mais ambígua, mais profunda e mais bonita.

*Arianna Warsaw-Fan Rauch é escritora e violinista formada pela Juilliard, que mora na Alemanha.

Tradução: Adriano Scandolara