Novamente o direito autoral estará no centro das discussões entre compositores, gravadoras e demais profissionais que trabalham com música no Brasil. E novamente será um debate que colocará em campos opostos antigos e novos parceiros, desta vez em discordância sobre como são feitos o pagamento e a distribuição de direitos na internet. Em resumo, é uma briga para se saber para onde vai o dinheiro gerado pela música tocada por Spotify, YouTube, Apple Music e outras ferramentas (chamadas no mercado de players) que ainda não existiam quando a atual Lei de Direito Autoral foi publicada, em 1998.
O primeiro passo para se tentar sanar as dúvidas foi dado nesta segunda-feira (15), pelo governo federal. O Ministério da Cultura (MinC) colocou em consulta pública na internet o texto de uma Instrução Normativa (IN) sobre gestão coletiva no ambiente digital. A ideia é repetir a experiência de 2010, quando uma proposta de reforma da lei de 1998 foi disponibilizada para que os interessados sugerissem modificações e fizessem críticas. Na ocasião, o governo recebeu quase 10 mil contribuições - mas, por trocas de ministros, mudanças de prioridades e falta de consenso, o projeto ainda não foi levado ao Congresso. A IN serviria, portanto, para fechar uma lacuna legislativa que foi aberta desde que o mercado da música migrou das mídias físicas para a internet.
“Essa IN não vai atingir a vida do cidadão comum. O que ela faz é regular a relação de gestão coletiva com os players”, afirma Marcos Souza, diretor de Direitos Intelectuais do MinC. “Há uma série de direitos que incidem na forma de operação desses players, e precisamos deixar claro quem pode cobrar por eles, e como.”
O ponto mais polêmico da IN está no inciso IV de seu artigo 6º, o que trata de “serviços em que há transmissão com finalidade de fruição da obra pelo consumidor, sem transferência de posse ou propriedade”. Ou seja, o streaming. O MinC compreende que sites como o Spotify e o YouTube envolvem execução pública, o que os obrigaria a pagar ao Ecad pelo uso das músicas, da mesma forma como fazem rádios e televisões.
“A internet é um espaço público, tudo o que está ali foi feito para ser público. E o streaming é uma tecnologia que permite o uso de música na internet. Não resta dúvida de que se trata de um modelo de execução pública”, defende Glória Braga, superintendente do Ecad. “A gente sabe que está diante de um mundo que em breve será todo em streaming. Então não podemos começar agora a matar direitos, isso só seria prejudicial para os criadores.”
A tese do MinC, porém, é rebatida por parte do mercado, principalmente gravadoras e players. Para esses, não há execução pública quando o streaming é interativo: os casos em que os usuários deixam de ser passivos e podem escolher que músicas ouvir.
Luciana Pegorer, diretora executiva da Associação Brasileira da Música Independente (ABMI), por exemplo, é uma que discorda da definição proposta pelo governo. “Uma execução pública acontece quando as pessoas podem ver ou ouvir uma mesma programação, ao mesmo tempo, de qualquer lugar em que estiverem. É assim com rádio e com TV, e também com a rádio digital. Mas não é assim com o streaming interativo. Nesse caso, o serviço é montado a partir das preferências de uma pessoa, assim como ocorre na venda de discos - afirma Luciana. - O mercado já estava caminhando para uma regulação com acordos entre os envolvidos. Mas agora, com a entrada do governo, não sabemos o que vai acontecer”, afirma.
Hoje, entre os maiores players internacionais que atuam no Brasil, apenas Spotify e Apple Music pagam ao Ecad pelo direito de execução pública. O Google também pagava pelas músicas executadas no YouTube, mas suspendeu os repasses e entrou com uma ação na Justiça exatamente para esclarecer que direitos são devidos pelo serviço. Outro que suspendeu o pagamento foi o Deezer, alegando a mesma falta de clareza.
Todos eles, porém, seguem repassando a gravadoras e editoras musicais os direitos de reprodução das músicas. Em termos legais, trata-se do mesmo direito que, no velho mundo físico, é cobrado pelas vendas de CDs.
Para Paulo Rosa, presidente da Associação Brasileira de Produtores de Disco (ABPD), seria este o cenário mais correto. A ABPD representa as maiores gravadoras em atividade no país, incluindo as três grandes multinacionais do setor, Sony, Warner e Universal, e defende que não há execução pública no streaming interativo.
“O Ecad arrecada e distribui sobre os usos em internet onde se verifica execução pública: rádios ou streaming não interativos, simulcasting (transmissão simultânea em mais de um meio) e transmissões ao vivo”, diz Rosa. “Já as receitas que as gravadoras repartem com seus artistas não se confundem com o universo da execução pública e são decorrentes de venda ao público (downloads por internet ou telefonia móvel) ou distribuição através de acesso de cada usuário ao conteúdo musical que desejar, no caso do streaming interativo.”
Segundo a ABPD, o ambiente digital representou, em 2014, 48% do faturamento das gravadoras com gravações musicais (excluindo-se shows e outras receitas). Dentro desse universo, 30% da renda vieram de downloads; 19% da venda de faixas e toques para celular; e 51% do streaming de áudio e vídeos. Os números de 2015 devem ser divulgados em março.
Sobre as dúvidas acerca do streaming interativo, Paulo Rosa lembra que as receitas ainda são “muito pequenas para remunerar as dezenas de milhões de gravações disponibilizadas”, mas destaca seu potencial de crescimento. Porém, enquanto isso não ocorre, acumulam-se críticas contra as gravadoras.
“No cenário em que os serviços de streaming interativo não paguem direito de execução pública, a concentração de lucro ficará nas mãos das gravadoras como era na época do CD. Elas estão, inclusive, correndo para comprar os players e acabar com a mediação entre gravadoras e consumidor”, afirma Daniel Campello Queiroz, advogado que representa artistas como Zeca Pagodinho, Tim Rescala e MV Bill. “O problema não está nos players. Eles querem pagar, mas querem saber para quem pagar corretamente.”
Nas regras propostas pelo governo, as duas modalidades de arrecadação (execução pública e reprodução) devem ser aplicadas no streaming interativo. Os valores são calculados conforme os contratos entre players, gravadoras e editoras musicais, e também pelo número de vezes que uma música é tocada. Depois são divididos com artistas.
Enquanto isso, um dos players que mais cresce no mundo garante que “cumpre e cumprirá integralmente com todos os ditames legais”, mas não deixa de opinar. Em nota, o Spotify questiona a classificação de execução pública do MinC: “O parágrafo 2º do artigo 68 da Lei de Direito Autoral define ‘execução pública’ como a utilização da música em ‘locais de frequência coletiva’. Como os usuários do Spotify selecionam o que irão escutar, não haveria que se falar em frequência coletiva, sendo esta entendida como uma programação contínua, simultânea e oferecida ao público, sem qualquer possibilidade de interferência do usuário.”
Os artistas, por sua vez, esperam que a discussão traga ao menos mais transparência, já que, nos últimos anos, tornaram-se comuns as reclamações sobre os pagamentos pelo streaming. A americana Taylor Swift, por exemplo, até retirou suas canções do catálogo do Spotify em 2014.
“Os contratos são fechados no exterior e as grandes gravadoras recebem seus pagamentos lá. Apenas uma parcela pequena vem para o Brasil”, diz a produtora Paula Lavigne, presidente do Procure Saber, grupo que reúne nomes como Caetano Veloso, Gilberto Gil e Chico Buarque. “É um modelo de negócio feito para não ter clareza.”
Integrante do Procure Saber, Marisa Monte também lamenta que os criadores estejam “perdidos no meio dessa guerra”. “É positiva a consulta pública, para que todos possam ser ouvidos nesse momento de regulamentação”, diz Marisa. “Para mim, como criadora, o streaming ainda é como uma miragem. Não dá pra saber se o que se recebe é justo pela falta de transparência dos acordos firmados.”
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