“Quando a mulher é boa/ é boa, muito boa/ o homem deve ter cuidado e capricho/ também quando ela é feia/ é feia, muito feia/ pode matar que é bicho.” Em 1949, Francisco Alves cantava a marchinha carnavalesca composta em parceria com Haroldo Lobo e Milton de Oliveira e o cordão ia atrás, sem que ninguém fosse tachado de misógino nem violento. Passados quase 70 carnavais, letras que carregam preconceitos contra mulheres, gays e negros vêm suscitando reflexões em foliões e pesquisadores, que levantam a questão: o politicamente correto tira a espontaneidade e a irreverência da festa?
Alguns blocos de carnaval paulistanos prometem vetar marchinhas tradicionais, adaptar letras ou mesmo executar músicas apenas na versão instrumental.
É o caso do Bloco Bastardo, agremiação fundada em 2013 que circula por Pinheiros com um repertório que mescla marchinhas tradicionais e outras menos conhecidas.
“Estamos estudando a questão, no sentido de evitar marchinhas antigas que reproduziam costumes da época, para que hoje as pessoas não cantem no automático sem questionar.”
“Acho importante promovermos a discussão. Algumas marchinhas são de outros tempos e uma leitura contemporânea evoca temas de racismo e misoginia, por exemplo”, afirma Pedro Gonçalves, um dos fundadores. “Estamos estudando a questão, no sentido de evitar marchinhas antigas que reproduziam costumes da época, para que hoje as pessoas não cantem no automático sem questionar”, diz Pablo de Sousa, outro fundador do Bastardo.
Há dois anos, o bloco cortou do repertório a clássica O Teu Cabelo Não Nega. Gonçalves não vê a música como racista, mas conta que, como muitos cantores e percussionistas do bloco simplesmente não executavam a canção, o grupo optou pelo veto. No caso da Cabeleira do Zezé, a solução foi intermediária: substituiu-se o verso “corta o cabelo dele” por “solta o cabelo dele”.
“Acredito que, se uma música realmente incomoda muito, vale a pena pensarmos em tirá-la completamente ou tocarmos só uma versão instrumental”, completa. “Minha intenção é promover um questionamento do repertório atual.”
Reflexão
A preocupação com as marchinhas tradicionais também foi debatida no bloco Quizomba, que nasceu no Rio e desfila no carnaval paulista desde 2011. Na edição deste ano, o grupo terá a estética tropicália e a temática de luta contra a misoginia e o machismo.
Para o diretor e mestre de bateria André Schmidt, é possível manter a veia lúdica da festa sem deixar de fazer uma reflexão. Em meio ao debate, Schmidt recebeu uma lista com 15 marchinhas que não deveria tocar.
“Hoje o mundo nos exige mais atenção e sensibilidade”
“Antigamente, a gente não precisava se preocupar com isso. Fazia parte da festa e a própria banda escolhia o seu repertório. Hoje, o mundo nos exige mais atenção e sensibilidade”, reconhece Cleber Paradela, um dos organizadores do bloco Vem Ni Mim Que Eu Tô Com Tudo.
Reação
João Roberto Kelly, compositor de outros clássicos como Maria Sapatão e Cabelereira do Zezé disse que nunca teve intenção de ofender. “Em mais de 50 anos de carreira, isso jamais me aconteceu. Esse repertório é tradicional do carnaval, nunca tive a intenção de ofender ninguém. O Zezé da ‘Cabeleira’ não parecia gay, ele parecia um Beatle, por ter cabelo comprido. São músicas que servem à leveza e à alegria do carnaval, não são para serem cantadas em setembro”, diz.
“Todas essas músicas marcaram época. Nunca tivemos crítica negativa. E a cada ano aumenta a participação de crianças e famílias.”
O bloco mais antigo de São Paulo, o Esfarrapado, nasceu em 1947 com o objetivo de preservar as tradicionais marchinhas. O atual presidente, Maurizio Bianchi, sequer cogita fazer alterações, principalmente para não desagradar ao público. “É um atrativo. Remonta ao verdadeiro carnaval de rua. Todas essas músicas marcaram época. Nunca tivemos crítica negativa. E a cada ano aumenta a participação de crianças e famílias.”
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