Uma muralha poderia separar o piano de Juliana D’Agostini das rimas de MC Garden. Juliana, em um rápido retrospecto: aos 29 anos, ex-aluna do Colégio Dante Alighieri, nos Jardins (zona sul de São Paulo), é graduada pela Universidade de São Paulo e conta com especializações nos Estados Unidos e na França, pelas instituições Académies Internationales d’Été du Grand Nancy e Strasbourg National Conservatoire.
Ganhou prêmios, solou com grupos como a Orchestra Femminile Italiana, a Orquestra Sinfônica da Bahia e a Bachiana Filarmônica e se apresentou, em 20 de maio de 2015, no Carnegie Hall, nos Estados Unidos, um dos palcos mais distintos do mundo.
Garden, em um breve resumo: aos 21 anos, é um ás das rimas que aprendeu a fazer pelas ruas de Americanópolis, no extremo sul de São Paulo. Ex-aluno do colégio municipal Habib Carlos Kirilos e do estadual Martins Pena, se acostumou com traficantes usando a laje de sua casa como torre para avisar aos chefes da presença dos policiais que entrassem naquele território.
Quando se deu conta de que deveria trabalhar, se lançou no mundo até ser admitido como recepcionista de uma sauna gay na Rua Frei Caneca, na região central. A essa altura, uma chave já havia virado em algum lugar de sua consciência. Em uma tarde, quando era criança, o pai, professor de matemática, e a mãe, dona de casa, o levaram junto para distribuírem cestas básicas a famílias carentes de sua vizinhança.
Juliana e Garden poderiam ter nascido no mesmo bairro que, ainda sim, teriam outros muros a saltar. Ela é da música erudita. Ele, do funk. Dois meios com tabus a serem quebrados e de convívio inimaginável, como se um não reconhecesse no outro nenhum elemento para chamar de música.
O funk, como o rap, teria letra demais e notas de menos. “Onde está a melodia, onde está a harmonia?”, perguntam os acadêmicos. O piano clássico representaria o código de um mundo à parte, um universo dos letrados, com música demais e refrões de menos que não faria esforço algum para olhar à sua volta, como a Sala São Paulo faz com a Cracolândia que a abriga.
O primeiro movimento para a parceria com o funk de Garden partiu de Juliana. Sua ficha já contava com um precedente importante. Ao lado do rapper paulistano Projota, ela participou do projeto Tribos, de 2013, quando oito clipes associaram linguagens da música clássica a expressões da cultura popular.
Projota entrou com a letra de Preste Atenção e Juliana, com um trecho de Etude-Tableaux Op 33 nº 9, de Sergei Rachmaninov. “Sempre gostei de hip hop, deu certo”, diz a pianista. Mais que isso. A dramaticidade dos russos parece sob medida para a dureza dos rappers. Tão certo que nada mais foi acrescentado, além da voz e do piano.
Sobre a melodia tensa e fascinante de Rachmaninov, Projota versa: “Senhor me faça bem e que esse bem eu retribua / Senhor me faça mal e desse mal me reconstrua / Senhor me faça sol e que eu traga a luz na escuridão / Senhor me faça escuro então o sol será em vão”.
A experiência abriu uma porta nos sentidos de Juliana. Mais que reproduzir partituras com alma e fidelidade, algo que resume a existência dos executores eruditos, ela sentiu a necessidade de criar, de interferir, fazer pulsar. “No erudito, aprendemos a tocar bem, a ser intérprete. Não temos acesso ao mundo pop”.
Ela viu Garden primeiro pela internet. Se interessou por seu trabalho e o convidou a ir para o estúdio em 2013. Garden entraria com um funk e Juliana, desta vez, com a Sonata Opus 1 Nº 1 de Prokofiev.
Os primeiros resultados não vingaram. “Achei que faltava batida, havia uma dificuldade para juntarmos as linguagens”, diz ela. Isso até conhecerem o produtor e também pianista Michel Shkava, que juntou as peças da melhor forma.
Prokofiev, aqui, não está sozinho com as rimas de Garden. As batidas cheias do funk, típicas da pegada do Miami bass, estão lá, com scratches e efeitos de estúdio. A parada para Prokofiev é mais difícil. Ele não é protagonista, como Rachmaninov foi com Projota, mas empresta de novo uma tensão ao discurso que Garden chama de funk do bem. A música ganhou o nome de Consciência.
O vídeo, produzido pela Casa Velha Filmes, começa no escuro. Um isqueiro é aceso, surge um cachimbo na penumbra da luz e um garoto diz, com voz trêmula, sem que sua face jamais apareça: “Sabe qual é a brisa do crack? Ele te faz viver uma outra realidade. A hora voa. Você não tem problema. Sai ‘cracando’, ‘cracando’. Da hora. Porém, é uma droga que é o seguinte: ela ilude.”
Imediatamente, os dedos longos de Juliana surgem ágeis sobre as teclas, como exige Prokofiev. Há assim uma introdução rápida até que a voz de Garden vem para colocar indignação naquele discurso musical: “O excesso de regras da sociedade fez com que a cidade sentisse uma dor / Pois na verdade faltou liberdade então decidiram ser livres do amor / Colocam padrão em quase tudo fazendo com que o mundo tenha ambições / Tudo conspira contra o seu sonho até te obrigam a não ter paixões”.
Garden e Juliana já brigavam com ursos antes de se unirem. Ela, bela e alta, cuidada em academias de ginástica, talvez não tenha o tipo que se espere das pianistas clássicas que passam a vida estudando oito horas por dia. O preconceito veio na mesma velocidade de seus dedos. Quando começava a carreira, nos Estados Unidos, trabalhou como modelo, fotografando e desfilando em semanas de moda. Era com esse dinheiro que pagava as aulas. Um apelido logo surgiu: “Barbie”. “Sempre senti esse preconceito”, diz.
Agora, ao se aproximar dos territórios proibidos de Garden e Projota, se depara com outros comentários nas redes sociais: “Essa moça perdeu a moral comigo”, diz um deles.
Garden, ou Lucas Rocha da Silva, começou a escrever suas rimas nas aulas vagas. Já comprava brigas, pegando versos do “funk proibidão”, conhecido por exaltar a criminalidade, para transformá-los em “funk consciência”.
Em 2013, assustou-se com um feito: ao contabilizar as visualizações pulverizadas do vídeo de seu Isso é Brasil, calculou que tinha 100 milhões de views. Encostei no Baile Funk veio em seguida, e o recado foi reforçado: “Por favor não estrague essa arte que surgiu do gueto e espalhou no País / Faça também sua parte pra valorizar o funk de raiz ...”
E então, começa a enumerar seus considerados das antigas comparando-os com o funk “vazio” das ostentações: “O Careca, MC Primo e Guga do Marapé / Que o proceder ali tava na veia / E não ficava humilhando a mulher / Do Marcinho, Bob Rum, Rap do Silva e do Solitário / Hoje MC virou só um produto / pra encher o bolso do seu empresário.”
Se Juliana precisava vencer o pensamento que cria preconceitos ao seu talento em nome de uma suposta tradição, Garden tem pela frente o mesmo, mas ao contrário. Fazer funk com mensagens positivas pode ser algo malvisto. “Já recebi recados no Face sobre isso”, diz ele. Suas existências são necessárias não apenas pela música que fazem.
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