Maior figura feminina do rock brasileiro, cantora pop com um caminhão de hits, testemunha (e participante) de boa parte da história da MPB desde o Tropicalismo, Rita Lee, 68 anos, não quis se escorar apenas no sonho de ser imortal - e enquanto há saúde, resolveu contar ela mesma a sua história, para poder gozar no final. Em “Rita Lee: uma autobiografia”, resultado de um mergulho na sua memória (“já queimada pelos incêndios existenciais que eu mesma ateei”, como brinca ela), a honestidade consigo mesma é a regra.
“Se o passado me crucifica, o futuro me dará beijinhos”, escreve a cantora, em meio a relatos sobre a infância, os tempos com os Mutantes, as dificuldades em começar a carreira solo, o sucesso, o amor, as drogas e as mil confusões de sua vida. É um livro-catarse em que ela dá a sensação de ter esvaziado o pote da existência.
“Nem bem abri um pote e você diz que já esvaziei todos?”, provoca Rita, em entrevista por e-mail, repleta de risos “rsrs” de linguagem internética (a preferencial para a sua comunicação nos últimos anos). “A ideia de ir escrevendo minha vida foi sem pressão de nada nem de ninguém. Com o tempo, a coisa foi se transformando numa verdadeira autoterapia onde descrevo impressões boas e más com distanciamento e bom humor. A única pessoa com quem eventualmente trocava umas figurinhas era o Guilherme Samora.”
Guilherme é aquele que Rita define como “o colecionador de mim”. Ele entra no livro, em curtas intervenções de “ghost writer”, na pele de um fantasminha camarada.
“Quando minha memória dava branco eu não ia consultar os googols da vida, eu buscava direto no provedor Guigol, que é como me refiro ao Guilherme, jornalista pop, melhor amigo e estudioso das aventuras de “ritalee”. Convidei-o para o papel do “phantom” porque deixei escapar algumas pérolas de que só ele se lembrava”, conta a cantora, que não é lá muito afeita a biografias autorizadas feitas com ghost writers tradicionais. “Acho que às vezes elas ficam com cara de entrevistão.”
Estupro e prisão
Caçula de uma família paulistana, Rita Lee não teve uma vida que se pudesse chamar de mar de rosas. Quando criança, foi estuprada com uma chave de fenda por um técnico de máquinas de costurar que visitara sua casa. Foi expulsa dos Mutantes, a banda que montara anos antes com os irmãos Sérgio e Arnaldo Dias Baptista. Na ditadura, foi presa, grávida, em casa, com maconha (plantada, segundo ela, pela polícia).
Quebrou o maxilar num acidente doméstico numa época em que entrava “pelas madrugadas entornando garrafas com Rohypinol”. E em 2012, foi presa em Aracaju por ter xingado policiais que investiram contra o público - e sua versão do que aconteceu ali está no livro, só que coberta por tarjas. Mas nada disso, porém, é motivo para Rita se martirizar nas páginas.
“Autoterapia serve para isso mesmo, para perceber que todo dramalhão tem um lado comédia. E que, apesar de ter sido uma, não compro fazer papel de vítima, muito menos ficar babando ovo para mim mesma”, diz. “É uma bio impressionista e despretensiosa.”
Muitos ficarão surpresos também com a desmitificação que Rita promove no livro em relação aos Mutantes e, principalmente, em relação a Sérgio (“De nós era o que cantava melhor, apesar de imitar Paul McCartney, o que eu achava vergonhoso”, escreve), o ex-marido Arnaldo (“Cantando era um tanto desafinado, nos vocais mandava bem.”) e a si mesma (“Não tocava nem cantava porra nenhuma”). Outros artistas são alvos de sua pena na “Autobiografia”, além de alguns jornalistas e desafetos de outras procedências.
“Mas quem se sentir mordido que escreva sua própria biografia, não é mesmo?”, ataca.
Aposentada dos palcos, com os cabelos grisalhos e os papéis de avó (da pequena Ziza) e de mãe (de um monte de animais de estimação) bem assumidos, Rita Lee mantém sua voz ativa no Twitter e no Instagram (vide os autorretratos abaixo). O momento de dicotomias raivosas que pululam nas redes sociais não escapam à sua língua virtual:
“Agora, neste meu modo dolce far niente, tenho tempo de sobra para acompanhar a politicanalhagem planetária e perceber a big picture da raça humana dando sinais de extrema incompetência no gerenciamento da Terra. Direita e esquerda se equivalem na canalhice.”
Fabricação em série
Sobre o roqueiro brasileiro - aquele que, como ela já disse, tinha “cara de bandido” e que hoje, em alguns casos, não tem mais pudores de pregar opções políticas à direita - ela não se ilude. O rock, aquele menino tão sabido que queria modificar o mundo, para ela, padece agora de um só mal:
“Síndrome da fabricação em série.”
E num momento em que o feminismo volta a ter fôlego no Brasil, com mil novos desdobramentos, como se sente essa Tia Rita que já deu tanto exemplo?
“O que mais se vê é um feminismo chauvinista do vamobotáozmachoprafudê, desviando a artilharia do que é mais importante: salários iguais e o direito sobre o próprio corpo.”
Por fim, em certo ponto da “Autobiografia”, Rita Lee fala sobre os dias de hoje, referindo-se a um certo “cenário musical brasileiro cada vez mais bizarro”. É o mote ideal para fazer uma daquelas perguntas de encerramento de entrevista: caso estivesse começando a carreira agora, que tipo de música você imaginaria estar fazendo?
“Instrumental, sem discursinhos ególatras”, devolve a cantora, que parece ter sempre uma resposta na ponta do mouse.
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