Vestindo uma camiseta onde se lê “Malandro é malandro, mané é mané”, o pesquisador musical americano Stephen Bocskay engana todo mundo com seu jeitão de turista mané que veste camisa de malandro. É justamente o contrário.
De passagem pelo Rio, onde vai dar a palestra “Da mestiçagem à negritude: uma reavaliação das narrativas sobre o samba”, nesta segunda-feira (11) à noite, na UFRJ, Stephen malandramente aproveitou a viagem para fazer uma série de entrevistas para o livro que está escrevendo, “Samba e afro-política durante a ditadura militar brasileira”, uma atualização da tese de doutorado que pretende lançar no ano que vem, quando o gênero completa 100 anos.
“Eu fico impressionado como alguns desses baluartes do samba, que tiveram tantas vivências profundas no samba, estão cheios de poesia. A cabeça de Monarco está estourando de poesia, ele pode cantar qualquer coisa, está no auge”, diz Bocskay, que em mais uma semana na cidade ainda pretende fazer novas entrevistas com Nei Lopes, Beth Carvalho e Martinho da Vila.
“São maravilhosos, tenho muito para perguntar a eles. Um sambista como Martinho, por exemplo, expõe todas as contradições do Brasil em sua obra. É o que diz Sergio Cabral pai: ‘Se a gente fosse resumir o Brasil numa pessoa, seria o Martinho’.”
Entendimento conservador
Percussionista e fluente em português, Bocskay tem pós-doutorado em Letras e Cultura Brasileira pela Brown University, já deu aulas de Literatura, Música e Cinema Brasileiro em Harvard e na Cornell University, e hoje é professor visitante na Universidade Federal de Pernambuco. Sua palestra no Rio vai esmiuçar a maneira pela qual diversos ensaístas narraram o samba ao longo da sua existência.
“Especialmente em dois momentos: no período Getúlio Vargas, onde ocorre uma espécie de “nacionalização” do samba, e depois, durante a ditadura militar. Em relação a esses dois períodos, há muitos ensaístas brasileiros que estabelecem uma pauta que preocupa, sobre como se pensa, ou não se pensa, a cultura negra em geral. É um entendimento, a meu ver, muito conservador, feito em tom acusatório, de que até os anos 1970 o samba não problematizava a questão da negritude, o que só começa a acontecer depois de “Dia de graça”, de Candeia. Como se não houvesse, até então, no Brasil, uma “causa negra”. E isso é uma mentira. A gente vê Solano Trindade, já nos anos 50, na poesia, entoar um supercanto à negritude: “Sou negro”. No samba-enredo, também, nos anos 60, há um auge de temáticas afro-brasileiras. São inúmeros exemplos, na história, na poesia, no teatro, na militância.”
Abordagem superficial
Em suas pesquisas, uma das coisas que mais chamam a atenção de Bocskay é o fato de documentários, livros e ensaios sobre o samba abordarem o gênero de maneira superficial, pouco crítica.
“A gente ouve um disco como “Raiz”, de Candeia, é uma musica completamente diaspórica, só para dar um exemplo. Tem ali cultura negra americana, tem cultura afro-cubana, afrobeat, ao mesmo tempo em que estava acontecendo. O Fela Kuti estava acontecendo. E é pouquíssimo estudado, muito pouco falado. Zé Keti é outro personagem fascinante, ele conquistou todos os espaços de excelência no Brasil, um dos que mais levantaram o samba, que viveu o Quilombo, o Black Rio, e merece muito mais atenção”, afirma o pesquisador.
“O samba é um território muito fértil. Imagina, o Brasil foi o maior sistema escravocrata no novo mundo! Olha quanta riqueza cultural aí. Isso está começando a mudar, nas universidades baianas se ensinam as línguas africanas, com as cotas circulam novos saberes, e é uma circulação por meio de agentes, ou seja, pessoas que estão nesses espaços.”
Às vésperas de 2017, quando haverá uma série de comemorações pelo centenário do gênero, Bocskay levanta as questões que, para ele, ainda precisam ser discutidas.
“Muitos pesquisadores vão bater na mesma tecla: o aspecto mercadológico, o aspecto musical, sobre as transições do samba. Mas o que falta é uma discussão maior sobre esses saberes da matriz africana, o que vem dos terreiros, por exemplo. As pessoas partem para a discussão do samba como identidade nacional. Mas chamo a atenção para o corte: e antes? Falta questionar também as outras formas de se falar de cultura negra no samba, a afrorreligiosidade é só uma delas. Senão a gente segue nessa mesmice, uma pobreza intelectual. Não estamos em 1955 para ficar discutindo “as grandes mudanças da MPB”, “os rumos da MPB”... É como a discussão sobre se “Pelo telefone” é ou não o primeiro samba: são discussões que só valem pelo prazer da discussão.”
Das coisas que ouve durante suas pesquisas, Bocskay cita um comentário recorrente: “Mas como um branco vai escrever sobre o samba?”.
“Toda vez que ouço isso, eu respondo que meu trabalho é muito bem recebido pelos negros, para começar. Segundo, se é para a gente ficar nessa de branco só pode escrever sobre branco, índio é que pode escrever sobre índio... Eu sou quem eu sou, o que posso fazer é ter mais consciência, mais sensibilidade de saber meu lugar nessa discussão. Se questionam por que um americano vai pesquisar sobre o gênero brasileiro, bom, nossas paixões e interesses não partem do nacional. O que interessa é se te comove ou não. É como diz o Elton Medeiros: ‘O que importa é se o samba é bom ou não’.”