Um deles é um barbeiro de 22 anos, que encontrou sua voz no rap, com rimas intensas que expressam a angústia de uma geração que só conheceu a guerra. Religiosa, sua mãe não aprovava o gosto pela música e sempre mudava de canal quando alguém começava a cantar.
A outra menina, de 16 anos, foi criada pela mãe viúva em uma cidade conservadora no leste do país. Quando sobe ao palco, com seu estonteante véu verde e vestido com detalhes prateados, ela agradece à mãe por defendê-la apesar dos protestos da família.
Essas são estrelas inesperadas de uma competição musical que segue os moldes de “American Idol” e oferece uma distração necessária em meio às preocupações da vida no Afeganistão.
Em sua 12ª temporada, o programa “Afghan Star” é puro entretenimento: vestidos com roupas chiques típicas e ocidentais feitas pelos mais novos estilistas do país, os jovens artistas sobem ao palco para cantar acompanhados por uma orquestra de instrumentos afegãos e ocidentais. As pessoas podem enviar mensagens de texto para votar.
Mas em meio a uma crescente batalha contra o extremismo, entretenimento desse tipo é um negócio arriscado, especialmente em uma sociedade conservadora que acredita que a música seja uma expressão vulgar. Especialmente quando inclui mulheres.
Os juízes do programa andam em carros blindados. Ao longo de toda a temporada do programa, os músicos recebem moradia segura. O público presente no estúdio é submetido a uma série de medidas de segurança.
Em temporadas anteriores, a rede que transmite o “Afghan Star”, a Tolo TV, alugava espaços na cidade para realizar as apresentações. Depois que as ameaças contra a equipe de produção se tornaram mais intensas – um carro bomba talibã matou sete membros da equipe no ano passado – a rede de TV decidiu que o estúdio de gravação dessa vez seria levado para uma rua murada em Cabul, na área protegida das residências diplomáticas.
Ainda assim, a guerra afetou a produção de música.
Durante um episódio recente, uma competidora mudou sua escolha de uma música animada, para um canção de luto que apresentou vestida toda de preto. Seu tio havia sido morto por um ataque suicida em frente ao Parlamento Afegão naquela semana.
“Nós dissemos que ela não precisava se apresentar naquela semana. Ela disse que não, que a vida tinha de continuar, mas mudou a seleção musical”, afirmou Massoud Sanjer, diretor de entretenimento da Tolo.
Comentários dos parentes
Nada disso atrapalha músicos como Zulala Hashemi, a menina de 16 que vivia com a mãe viúva em Jalalabad, uma cidade tão conservadora que as mulheres raramente são vistas nas ruas – e quando se arriscam a sair, quase sempre vestem burcas.
Entre as gravações, quando mãe e filha voltam para casa, usam suas burcas para desaparecer no anonimato.
Zulala sempre cantou em casa, mas nunca fez aulas de música. Este ano, quando viu o anúncio de seleção para o “Afghan Star”, pediu para a mãe para participar – e ficou surpresa ao conquistar uma vaga no show, que a levaria a Cabul.
“Sua voz tem muito a ver com a geografia afegã: é montanhosa”, afirmou Waheed Qasemi, o diretor musical do programa, que é um artista muito conceituado no país.
Contudo, para que sua voz fosse reconhecida, Zulala teve que enfrentar a resistência dos parentes, incluindo o irmão, que é policial. Ela também tem medo de enfrentar os professores e as colegas de sala que “podem ficar bravos” com ela.
“Eu sabia que não me dariam permissão e até o momento ninguém permitiu que eu viesse para cá”, afirmou Zulala a respeito dos parentes. “Mas eu queria mostrar meu talento, não queria que isso fosse desperdiçado.”
O que tornou tudo possível foi o apoio da mãe, Mermen Hashemi, formada em Economia e que já trabalhou no alto escalão de muitas empresas da região, incluindo os arquivos do governo. Hashemi criou sozinha os nove filhos desde que o marido ficou doente e morreu há 16 anos. Além disso, ela afirmou que não se abala com os comentários dos parentes.
“O que tenho é fruto do meu trabalho e defendi a mim e aos meus filhos. Ninguém me deu nada e não permito que falem sobre meus filhos”, afirmou Hashemi.
Ela passou os últimos três meses com a filha em Cabul, seguindo-a “como uma sombra”, de acordo com Sanjer. Fica na sala de espera enquanto Zulala sobe ao palco e a segue até o camarim quando precisa trocar de roupa entre as apresentações.
Rap na barbearia
O competidor com mais chances é Sayed Jamal Mubarez, um barbeiro da cidade de Mazar-i-Sharif, no norte do país, que ganha quase todas as semanas.
Com a chegada da fama, sua mãe ficou menos radical: ela assiste as apresentações, mas desde que ele não fale nada vulgar, nem mostre mulheres dançando nos clipes.
Mubarez descobriu o rap há apenas quatro anos. Em sua barbearia, ele cantava ao som de artistas iranianos enquanto cortava cabelos. As letras de protesto faziam sentido para ele.
Há cerca de dois anos, Mubarez começou a escrever os próprios versos. Purista, parou de escutar outros rappers para garantir que suas letras venham do coração. Ele escreve durante a noite e quando não consegue terminar a letra em 90 minutos, deixa-a de lado para que não fique forçada.
“Se me levanto da mesa e digo que vou terminar a letra outra hora, sei que aquele rap não vai ficar pronto”, afirmou Mubarez.
Ele ganhou muitos seguidores ao longo dos quatro meses de programa. Um feito impressionante em um país que começa a descobrir o rap neste momento. Em geral, ele fala de temas que toquem o povo.
Muitos de seus raps são inspirados por histórias pessoais, como o que escreveu sobre sua falta de educação formal. Mubarez ia à escola com um primo que depois foi à universidade, ao passo que ele, o filho mais velho de sua família, começou a trabalhar aos 12 anos de idade – misturando asfalto ou tirando a neve das ruas – para levar dinheiro para casa.
Anos mais tarde, o primo universitário ficou com a família de Mubarez. Ele conta que se sentia nervoso perto do primo, envergonhado da própria ignorância. Depois de deixar o parente no ponto de ônibus certa noite, colocou os sentimentos no papel.
“A diferença entre nós é grande como o céu e a terra/ Não me diga por que não estudo – vá embora e deixe-nos viver”.
Em sua barbearia, ele postou um rap no YouTube e o compartilhou no Facebook para que as pessoas – em especial o primo – pudessem ver que “se Jamal não estudou, isso só aconteceu porque a vida dele era diferente da sua”.
Pressão
Até mesmo homens como Mubarez sentem a pressão da sociedade quando começam a se apresentar. Isso ficou claro durante um episódio recente, quando fez um dueto com Aryana Sayeed, a estrela pop afegã que é juíza no programa.
Sayeed, que passa boa parte do ano fora do país, é tão conhecida pela música, quanto por seu estilo ousado, forçando os limites de uma sociedade conservadora com vestidos insinuantes.
No dia da apresentação, ela estava usando um vestido azul que acentuava suas curvas; Mubarez, com um boné vermelho do New York Yankees e uma bandana branca, usava tênis vermelhos, calças brancas e sua jaqueta preta predileta.
No meio da apresentação, para a surpresa do público presente, os dois começaram a dançar, balançando da direita para a esquerda.
Quem assistiu a gravação não teve a mesma sorte. Os executivos cortaram a dança, aparentemente porque a apresentação de Sayeed foi provocante demais.
Porém, colocaram o vídeo on-line, e a família de Mubarez teve a oportunidade de ver a gravação.
“Eles estão meio desconfortáveis. Minha mãe não ficou feliz”, afirmou Mubarez.