Eddie Vedder está se sentindo um lixo. Talvez isso explique porque ele está sendo condescendente com 65 mil pessoas numa noite de sábado em São Paulo.
Há pouco mais de 24 horas o show de uma banda de rock americana foi palco de um ataque terrorista em que mais de 120 pessoas foram mortas a sangue frio. Paris está em chamas e lançada em estado de emergência a mercê do Estado Islâmico – como parece estar o resto do mundo todo –, mas Vedder tem que se apresentar diante de milhares de fãs que aguardam o show de sua banda há oito meses como se isso fosse mais importante para o país que o impeachment da presidente.
Se a música ajuda a lidar com a raiva e a tristeza, num mundo pós-Estado Islâmico, é bom que também ajude a combater a paranoia.
No caso de Vedder, quase não ajuda. Contudo, três horas e nove minutos depois, sua condescendência funciona em parte graças ao carisma e ao bom-mocismo incomparável do músico. Ajuda o fato de a plateia estar vendida e eletrificada após uma chuva impetuosa e um setlist de 33 músicas. Qualquer coisa que ele dissesse reverteria em ovação. Entretanto, ele não diz qualquer coisa. Diz que havia subido ao palco extremamente abalado e nervoso. Confessa que tinha passado o show preocupado com a segurança de todos, mas que no final “vocês nos fizeram sentir seguros”. E, embora a declaração de Vedder seja desprovida de sentido para a multidão – ele parecia ser o único temeroso com segurança –, o povo delira e acredita, recusando-se a ver estampado na cara dele, entre um gole de vinho e outro, o alívio pelo show ter acabado.
Arrisco dizer que agora, 180 minutos depois, ele se sente quase relaxado, improvisando uma versão cocainômana de “All Along the Watchtower”, já com um pé fora do palco.
Não posso precisar se a banda temia um atentado similar ao de Paris no estilo “aberta a temporada de caça às bandas de rock americanas em solo estrangeiro” ou se ele apenas se referia à estrutura do estádio, embora esteja inclinado a acreditar na primeira hipótese.
Você também estaria se ouvisse o homem repetir logo no primeiro quarto do show instruções sobre como “a qualquer momento, se algo acontecer com algum de vocês, avisem as pessoas próximas. Temos um código para saber que devemos parar de tocar,” algo que a princípio parece demonstrar o quanto a banda preza pela segurança dos fãs caso não soasse absolutamente absurdo: a logística de conseguir acudir alguém no meio de 65 mil pessoas enquanto alto-falantes do tamanho de uma casa explodem em direção a uma multidão que pula alucinada é quase zero, independentemente do esquema que eles tivessem.
Paranoia pouca é bobagem nos dias de hoje, certo? Não no caso de Vedder, que deve sofrer de alguma variante de estresse pós-traumático. Passou metade da carreira saltando na multidão de torres de som do tamanho de um prédio de três andares até o fatídico dia em que assistiu a nove fãs serem pisoteados até a morte em um concerto da banda na Dinamarca 15 anos atrás e nunca se recuperou. Isso explica por que ele para a cada duas canções e pergunta se está todo mundo bem. Trata-se de um tipo de zelo quase surreal, doentio se preferir. Decida você. E isso tudo foi antes dos acontecimentos fatídicos no Bataclan. Tente imaginar como serão as coisas para ele daqui para frente.
Antes de mais nada, vamos tirar algumas coisas do caminho. Musicalmente falando, mesmo entregando uma performance visivelmente tensa, o Pearl Jam ainda fez valer o valor abusivo do ingresso. Vai ser difícil encontrar uma voz discordante acerca disso. Mesmo porque, quatro horas antes do show começar, já era sabido que ele seria histórico.
Precisamente às 16h12, caminho na pista em frente ao palco onde uma centena de jovens pagou mais que dois salários mínimos para estar diante de seus ídolos. A vista é promissora. Estamos falando de centenas de jovens adultos que conversam efusivamente enquanto bebem cerveja e devoram hambúrgueres. Ignorando o fato de que não moramos no noroeste dos Estados Unidos, estão todos vestidos como lenhadores de Salem, embora o termômetro marque 33 graus. Decido conversar com um grupinho que está sentado de costas para o alambrado, guardando seus lugares. Todos vestem a mesma camiseta com a capa do último disco da banda, ou pelo menos parece a mesma, já não sei. Eles também seguram cartazes rudimentares de papelão que vão usar para chamar a atenção de Vedder e companhia. Alguns dizem coisas como “Fulano é Deus” e “Me dá suas baquetas, Beltrano”, enquanto outros apoiam o time de beisebol do coração de Vedder. Não são muito receptivos a princípio, mas eu insisto.
“Nem acredito que vou ver eles de novo”, diz uma menina ruiva que deve ter uns 22 anos e parece uma testemunha de Jeová. Ela assistiu à banda em Porto Alegre três dias atrás, mas é como se esse fosse o primeiro show de sua vida. “Estou esperando um setlist totalmente diferente, então sei que vai ser um baita show, eles não erram a mão.” Descubro que ela não é de São Paulo e pergunto quem financia a turnê dela já que vai acompanhar os outros shows da banda pelo país, em Brasília, Belo Horizonte e Rio. “Passei os últimos oito meses economizando, sou estagiária. Quer dizer, era. Meu estágio coincidiu de acabar bem agora, então estou de boas pra viajar.” Pergunto se ela mora com os pais e como foi ter economizado cada centavo e levado uma vida sabática para poder estar aqui. “Foi por aí. Meus pais me ajudaram pra caramba agora no final. Meu pai também adora o Pearl Jam. Ele veio com a gente, está ali comprando batata frita pra galera.”
Volto pra sala de imprensa porque estou aguardando um e-mail e temo que o sinal do meu telefone não funcione na pista. A sala antes vazia agora abriga dois sujeitos ocupando mesas separadas. Verifico meu e-mail. Nada. Pego uma garrafa d’água e tento esboçar uma conversa com um dos jornalistas, o mais velho. O indivíduo está sentado imóvel diante de seu laptop e penso duas vezes antes de perturbá-lo, até que me dou conta de que ele não está respondendo e-mails nem nada similar, mas sim jogando algo nos moldes de “Candy Crush”. Trata-se de um jornalista de no mínimo 50 e poucos anos, cabelos brancos num rabo de cavalo e algo em torno de 120 quilos. Ele veste uma camiseta desbotada do Manowar incapaz de cobrir toda a circunferência de sua barriga, portanto um parte dela fica a mostra, para sua total indiferença. Ele ignora meu “olá” e pergunto para quem ele está cobrindo o show. “Um jornalzinho aí, acho que você não conhece.” O sujeito do outro lado da sala dá uma risadinha irônica, ou uma bufada, não sei dizer. Não desisto e questiono o que ele acha do Pearl Jam, já que deve ser um ponto de vista fascinante. “Diz você que deve ser fã de carteirinha do Vedder. Eu não gosto desse chororô deles, não.” Digo que ele acertou, gosto do chororô deles mesmo. As vezes é um pé no saco, mas quando acertam, vale o esforço. Ele nem vira o pescoço. Indago se ele está usando a camiseta do Manowar ironicamente. “Você é louco?! Vai ouvir música de verdade rapaz!” Então pergunto se caso Orson Welles tivesse narrado a última parte de “Black” do Pearl Jam e a música chamasse “Black Avenger” ele mudaria de opinião sobre a banda. O sujeito do outro lado da sala solta outra risadinha irônica. Ou bufa. Volto pra pista.
No caminho recebo o tal e-mail. É a assessoria de imprensa do próprio Pearl Jam. Eu havia requisitado como uma última tentativa, a possibilidade de conversar com Vedder por meros 15, 10 ou 5 minutos que fossem, ali no estádio mesmo antes do show. Mas como já disse, Eddie Vedder está se sentindo um lixo hoje, e eles me dizem que ele não vai conversar com ninguém. Está muito abalado com os acontecimentos de noite passada em Paris. “Fica para uma próxima” diz o e-mail. A questão é que numa “próxima” as coisas já terão mudado e eu realmente queria cavoucar o cérebro do sujeito acerca de um sem-número de coisas, de Paris até as eleições americanas ano que vem. Vedder é um animal político, suas opiniões pesam, quem morou nos EUA sabe disso. Como ele se posiciona diante dos ataques em Paris? Faz par com os demagogos em busca de um entendimento cultural riponga nesse espetáculo patético que temos visto ou vai verdadeiramente condenar os ataques? Quem ele apoia no partido democrata, Hillary ou Bernie Sanders? Embora seja amigo pessoal do marido da primeira (quando Cobain morreu, Clinton ligou para Vedder e perguntou se deveria fazer um pronunciamento à nação, Vedder disse que isso incitaria imitadores de Cobain) e que ela esteja liderando as pesquisas, gostaria de saber o que Vedder acha da estratégia “socialista” de Sanders – que rejeita grandes doadores, propõe a proibição de doações ilimitadas e diz que não precisa de dinheiro das grandes empresas. O vovô Sanders me parece muito mais rock-and-roll e em sincronia com a ideologia do próprio Vedder que Hillary. Fiquei sem saber por hora. C’est la vie. Ah, e claro: fico no escuro também sobre o setlist da noite, sobre as surpresas que a banda preparou para homenagear Paris e sobre se ele tem surfado muito.
Já na pista novamente, vejo uma figura que destoa do resto dos presentes. Ele está bem ao lado do palco, na entrada da coxia assistindo com um sorriso no rosto duas mulheres em tailleurs pretos baterem boca com um segurança mal encarado. “Mas esse é o trabalho dele! Ele TEM que entrar pra poder tirar as fotos, amigo!” O segurança de olhar fixo apenas repete: “Não posso deixar ninguém passar, senhora”. Acendo um cigarro e ofereço outro para o sujeito, que aceita de pronto. Estamos falando de um cara alto, ruivo (outro) usando um boné dos Supersonics, jeans e uma camiseta do Exército da Salvação. A ironia desta tarde é que o único cidadão de Seattle que eu encontrei não lembrava nem de longe um lenhador. Na verdade ele passaria completamente despercebido se não fosse pela enorme máquina fotográfica na mão. Iniciamos uma conversa e descubro que ele é o fotógrafo da turnê da banda. As loucas que a essa altura estão quase socando o segurança, são da assessoria de imprensa e o trouxeram aqui para fazer fotos da pista e do palco, que talvez não cheguem a acontecer. Pergunto se ele prefere fotografar shows da banda em lugares menores e ele diz que o que prefere mesmo é viajar e porque não importa onde toquem, ele sempre consegue fazer seu trabalho. Então pergunto em qual membro da banda se usa mais Photoshop e ele solta uma gargalhada. Dividimos outro cigarro enquanto ele me mostra as fotos que havia feito anteriormente. Um vendedor de água do lado de fora do estádio, filas quilométricas com pessoas sorridentes e até uma panorâmica aérea do estádio. As mulheres desistem de convencer o segurança e o fotógrafo resolve agir feito um lenhador, se metendo no meio do povo e abrindo caminho até o alambrado, o lugar mais próximo que consegue chegar da coxia. Ele aponta a câmera para o pássaro gigante de sucata que fica suspenso em cima do palco e dispara.
As profecias se concretizaram e o Pearl Jam fez tanto a apresentação que todos aguardavam quanto o show que ninguém esperava, cheio de pérolas e faixas raras nunca antes tocadas em solo sul-americano. Parece confuso mas eles são esse tipo de banda. Como músicos, funcionam dentro de uma construção baseada em seu repertório mas jogam com o acaso que é definido pelo clima da noite, pelo humor dos próprios integrantes e pelo lugar onde estão se apresentando. Isso tudo tem um papel predominante em suas performances. Trata-se de uma das maiores qualidades do Pearl Jam segundo seus seguidores, é o que os separa dos demais.
Quando entraram no palco e começaram o show sem falatório algum e já estabelecendo uma atmosfera tensa, emendando logo de cara três canções sobre desilusão com o mundo, eu ainda tinha alguma esperança de que, assim que Vedder falasse com a multidão, ele se mostraria absolutamente colérico a respeito dos acontecimentos da noite passada, pedindo justiça e condenando os lunáticos que perpetuaram tal selvageria.
O Pearl Jam perdeu a vantagem de poder ser apenas outra banda de rock “descompromissada” que não se envolve com política quando gravou dois álbums (“Riot Act” e “Abacate”) atacando veementemente a administração do governo Bush, fazendo piquete contra Dick Cheney e Donald Rumsfeld durante a turnê de ambos os álbuns e apoiando Barack Obama em palanque durante suas duas candidaturas. No caso particular de Bush, o que mais parecia irritar Vedder – e que ele viria a perpetuar em uma canção intitulada “Bushleaguer” – era o fato de que o ex-presidente havia levado o povo americano a um estado de medo contínuo com seu mantra de “guerra ao terror”, e feito dele seu fantoche. Essa correlação apenas já seria o suficiente para que Vedder se exaltasse com os bárbaros de Paris e fizesse valer sua voz, talvez incutindo algo na cabeça de milhares de fãs sem posicionamento político que ouvem a ele mais do que a seus pais e educadores.
Quando o momento chegou e ele finalmente se dirigiu ao público, o que Eddie Vedder disse? Que o coração dele estava com todos em Paris. “Temos ainda muito a superar juntos.”
Temos ainda muito a superar juntos. Assim. Parecem palavras de um político encerrando uma coletiva de imprensa logo no início.
Tenho que admitir. Se fossem os caras do Manowar, eles provavelmente teriam costurado um boneco de pano simulando um terrorista do Estado Islâmico e o teriam depenado com suas guitarras em formato de machado enquanto tocavam “Dark Avenger”.
E nem precisamos ir tão longe. É o que a maioria dos heróis de Vedder faria. De Neil Young, Bob Dylan e Springsteen até Thurston Moore, Mark Arm e Ian MacKaye. Quem deixaria barato?
Mais tarde no show, é claro, ele fez outra homenagem, tocando um velha cantiga de natal utópica enquanto a multidão levantava os celulares no ar, inebriada. Fico imaginando quando ele vai fazer shows de graça e deixar de cobrar R$ 100 por uma camiseta oficial da banda.
Decido ir até o outro lado do estádio e no caminho simplesmente me desligo de Vedder. Ligo novamente quando decido dançar “State of Love and Trust” e “Rockin’ in the Free World”. Afinal de contas, o Morumbi não está infestado de terroristas e nenhuma bomba vai explodir hoje à noite, independente do climão palpável. E também, apesar do alarde durante todos esses anos, o Pearl Jam é apenas outra banda de rock, muito boa por sinal e com músicos singulares. Ainda que seu vocalista tenha engasgado na frente de todas essas pessoas hoje. Pouco importa. Na saída do concerto, elas faziam comentários como: “Nossa, a emoção dessa chuva mais os atentados em Paris foi demais!”.
Vinte e quatro horas depois do show, estou sentado na sede paulistana do lendário restaurante nova-iorquino P.J. Clarke’s comendo um sanduíche de atum defumado e jogando conversa fora com minha mulher. A única coisa que não está em pauta é o show da noite passada, assunto encerrado no almoço. No meu segundo Martini, a porta do restaurante abre e um bando de gringos entra e senta na mesa bem ao nosso lado. Trata-se de metade do Pearl Jam e mais meia dúzia de seguranças. Minha esposa fica eufórica e a garçonete me pergunta quem eles são. Parecem todos muito mais velhos em pessoa. Em poucos minutos os pedidos são feitos e as bebidas começam a chegar. Não demora para que comecem a contar histórias e gargalhar. Estão se divertindo de verdade.
Eddie Vedder não está entre eles.
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