Martin Bauman, o herói de caráter duvidoso do romance Uma Vida de Amor e Mentiras, guarda bem mais do que uma vaga semelhança com o autor da obra, o norte-americano David Leavitt. Como o escritor, o personagem cresceu na Costa Oeste dos Estados Unidos e migrou para o Leste, com o intuito de freqüentar uma universidade da Ivy League, liga de excelência do ensino superior norte-americano. Também a exemplo de Leavitt, Bauman revelou-se uma espécie de garoto prodígio das letras, tendo publicado um conto, aos 20 e poucos anos, na prestigiada revista literária The New Yorker (que no livro recebe um título justificadamente fictício). Da mesma forma, teve breve passagem pelo quadro de funcionários de uma editora de renome e, eventualmente, tornou-se um respeitado autor de romances e contos.
Uma Vida de Amor e Mentiras, que acaba de ser publicado no Brasil pela Arx, é narrado em primeira pessoa em um tom de reminiscência íntimo e bastante confessional. Bauman revela um misto de nostalgia e ressentimento ao falar de um passado não tão distante, quando desfrutava da efêmera e algo enganadora glória de ter sido, por alguns meses, o "autor revelação" em um meio literário tão mesquinho quanto competitivo. É impossível lembrar que Leavitt vivenciou o mesmo processo em 1984, quando lançou sua primeira coletânea de contos, o brilhante Family Dancing (inédito no Brasil).
Pode-se dizer que Uma Vida de Amor e Mentiras seja dividido em duas partes distintas. A primeira, sincera e muito bem-escrita, tem a estrutura de um clássico romance de formação, que enfoca o rito de passagem de um jovem artista à idade adulta. Provocativo e engraçado, o texto tem o grande mérito de revelar como se dá o processo de desenvolvimento de um futuro escritor que tem talento suficiente para ambicionar uma carreira. Como pano de fundo, a eferverscente Nova Iorque da década de 80. O foco da narrativa é, sobretudo, a intensa e turbulenta relação de Bauman com seu professor de Criação Literária, o exigente Stanley Flint, e a tentativa do pupilo de se libertar da sombra vaidosa e controladora do mentor.
Já a segunda metade da saga de Bauman não é tão coesa e eficiente quanto a primeira. Talvez porque a vida do personagem também comece a sair dos trilhos com o virar das páginas. Tudo vai mal, de sua errática produção literária a sua tumultuada vida pessoal, marcada por casos amorosos desastrosos, doenças venéreas e relações de amizade igualmente turbulentas.
O que não se perde nesta parte do livro é o tom confessional adotado por Leavitt, que reflete o latente desespero de Bauman. Essa opção do autor é corajosa, porque pode ser interpretada como se ele tivesse perdido o controle da narrativa demonstrado na primeira metade. Na verdade, pode tratar-se de uma escolha metalingüística, na qual o conteúdo da prosa interfere em sua forma.
Como Uma Vida de Amor e Mentiras é um relato em primeira pessoa, a desestruturação do texto reflete o estado de confusão mental do protagonista, que depois de uma estréia promissora no círculo nova-iorquino das letras, começa a patinar na pretensão e na incapacidade de produzir algo tão bom e impactante quanto suas primeiras histórias.
O interessante é que essa segunda metade do romance apresenta os mesmos defeitos apontados a Bauman por um editor que se recusa a publicar suas histórias: "o tom condescendente" e "a ausência de personagens com os quais o leitor possa identificar-se". O mesmo acontece com Uma Vida de Amor e Mentiras, no qual se esvai o fascínio exercido pelos personagens apresentados nas páginas iniciais, como a mãe excêntrica do protagonista e seu bizarro círculo de amigos na universidade.
As novas pessoas na vida de Bauman, de seu ponto de vista, não despertam qualquer tipo de identificação ou empatia. E o humor e a autocrítica corrosiva cedem lugar a um certo tom de vitimismo que, pouco a pouco, transforma-se em oportunismo e ambição em doses exageradas. A necessidade de reconquistar a atenção da crítica e, principalmente, do meio literário, chega a beirar o patético, fazendo lembrar os tempos em que fazia de tudo para conquistar professores na universidade e provar ser melhor do que os outros.
Quando reencontra Stanley Flint, o mentor com quem brigou ao ouvir que não era um escritor tão genial quanto imaginava, Bauman tem uma revelação perturbadora. É o arremate para o livro de Leavitt.
Mais do que um mestre, Flint representa para Bauman a figura paterna capaz de lhe indicar o caminho rumo à felicidade, à consagração algo de que jamais desfrutou em sua vida familiar. Por isso, o professor, dentro da cabeça do protagonista, toma proporções monstruosas. E, ao se perceber apenas mais um entre tantos jovens aspirantes a escritor a atravessar o caminho de Flint em seus anos de vida acadêmica, Bauman se dá conta, talvez tarde demais, de que sua vida foi pautada por mentiras e ilusões.
Leavitt no Brasil
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