"Não sobre o Amor" propõe uma reflexão sobre exílio, solidão e amor| Foto: Carol Sachs/Divulgação
Cena de

O diretor curitibano Felipe Hirsch inspirou-se no livro Letters Not About Love para construir o espetáculo Não Sobre o Amor (confira o serviço da peça) – com última sessão neste domingo (21) no Festival de Curitiba. O ponto de partida para a dramaturgia são as cartas reais e imaginárias trocadas (e inventadas) entre o escritor russo Victor Shklovsky e a romancista franco-russa Elsa Triolet no início do século passado – além de trechos de outras correspondências assinadas por Lilía Brik (irmã de Elsa) e Vladimir Maiakovski (seu amante).

CARREGANDO :)

Apenas dois atores, Leonardo Medeiros e Simone Spoladore, sobem ao palco. A dupla verbaliza o conteúdo das cartas supostamente trocadas entre esses dois possíveis amantes. Tudo começa quando Elsa (rebatizada de Alya nas cartas) pede: "se quiser escrever, escreva, mas não sobre amor". Shklovsky, exilado na Alemanha, aceita o desafio, e na nova realidade do exílio descreve seus dias solitários. São diversos os assuntos abordados nas cartas, mas tudo soa amor. Ele fala do amor que sente por ela sempre de forma metafórica. O mundo dele só tem um endereço: Alya/Elsa.

As cenas se dividem entre a narração das lembranças de Shklovsky e acontecimentos produzidos por sua mente, onde Alya/Elsa toma forma. É um espetáculo de amor – apesar do título – mas não só sobre amor. Fala também da ausência, do estado de procura por si mesmo, da saudade que move o exilado, da re-construção da vida e da re-adaptação daquele que se encontra fora do seu espaço original.

Publicidade

Shklovsky (1893-1984) foi um dos principais teóricos do Formalismo Russo. Ele criou o conceito de retirar um elemento de determinado contexto e fazer com que ele seja sentido a partir de sua falta. No caso da peça, o elemento retirado é o amor devido à proibição feita por Alya/Elsa.

Assim como nas cartas de Shklovsky, tudo no palco está fora do lugar. No cenário intimista de Daniela Thomas todos os objetos são deslocados de suas posições naturais. Tudo é ao contrário. A cama está armada na parede frontal (inclusive com o ator deitado nela). Disposta na parede direita, uma escravinha com máquina de escrever e cadeira está invertida e o ator senta de costas para o chão. A janela está no teto. A porta está no alto da parede. A lâmpada, no chão. É um caos visual. A caixa/quarto amarela de Shklovsky é quase uma prisão. Lá, a memória e os pensamentos do escritor vêm e vão de forma desconexa como num sonho.

Interessante são as imagens projetadas de Alya/Elsa. Tem horas que não sabemos se a atriz está realmente no palco ou na projeção. A utilização do vídeo reforça o clima de sonho. Nessas projeções estão trechos das cartas e comentários sobre o que estamos ouvindo. A primeira frase impressa na parede traz uma fria constatação sobre o valor das palavras simples: "todas as palavras boas estão pálidas de exaustão. Flores, lua, olhos, lábios. Eu gostaria de escrever como se a literatura nunca tivesse existido. Eu não consigo. A ironia devora as palavras".

Em um dos momentos mais cruéis da peça, a Alya projetada na parede do quarto responde a uma carta de seu apaixonado: "Pare de escrever o quanto, o quanto, o quanto, o quanto, o quanto você me ama, pois no terceiro quanto já estou pensando em outra coisa".

Em "Não Sobre o Amor", nada nos é entregue de forma direta. Em nenhum momento fica evidente se houve mesmo um relacionamento entre os escritores. Trata-se de uma obra aberta. Você não vai sair de lá com uma história fechada na cabeça. Talvez aceite o convite de Shklovsky a pensar na distância entre aquilo que ele (e nós) sonhava (sonhamos) ser e acabou (acabamos) tornando.

Publicidade