O historiador britânico David Irving, um biógrafo de Hitler, já comparou Auschwitz à Disneylândia, ao afirmar que o lugar que abrigou o campo de concentração nazista é uma atração para turistas. Irving faz parte de uma minoria que, movida por antissemitismo, alega que o Holocausto não aconteceu como ficou registrado na História. Para ele, os relatos sobre o mais documentado genocídio de todos os tempos são uma farsa para favorecer os judeus. O filme “Negação” conta como Irving perdeu um processo contra a historiadora americana Deborah Lipstadt.
Na ação judicial, movida há 16 anos, Irving exigiu que Deborah provasse que o extermínio de seis milhões de inocentes realmente ocorreu. Foi derrotado, classificado pela Justiça britânica como racista e teve sua carreira acadêmica destruída. O caso foi encerrado, virou filme, mas não calou gente que pensa como ele.
Nas redes sociais, uma nova geração de negacionistas — termo usado para definir os que dizem que o Holocausto não existiu — vem ganhando força. Entre eles, há indivíduos ou grupos de extrema-direita que se aproveitam da facilidade que a internet proporciona para a disseminação de mentiras e teorias conspiratórias. Sua principal alegação é de que as câmaras de gás, onde foram assassinados de idosos a bebês, são uma invenção das potências ocidentais para promover os interesses de Israel, uma “mitologia” amparada por um sentimento de culpa do mundo cristão.
No YouTube, extremistas como o videomaker americano Eric Hunt encontram terreno fértil para proclamar que a matança comandada por Hitler é um embuste. Os discursos de Irving também são populares na rede.
Na vida real:
Hoje com 78 anos, o escritor britânico é conhecido pelos seus livros abordando a Segunda Guerra, tornou uma figura notória na historiografia do conflito ao negar a existência do Holocausto. Ele perdeu a ação que moveu contra Deborah Lipstadt, e desde então foi banido de entrar em países como Alemanha, Áustria, Itália e Canadá.
Mais conhecida pelo seu livro “Negando o Holocausto”, a historiadora de 69 anos é professora de história judaica moderna na Universidade de Emory. Autora de um livro sobre o julgamento de Adolf Eichmann, ela já trabalhou no Museu Memorial ao Holocausto, em Washington, de onde também já foi conselheira, durante o governo Clinton.
Os ativistas da negação reconhecem que a Alemanha nazista perseguiu os judeus, mas comparam os campos de concentração a outros campos de prisioneiros mantidos em tempos de guerra. Para eles, as vítimas não chegaram aos milhões e morreram principalmente de doenças. Os comentários postados no vídeo do trailer de “Negação” são exemplo de como fatos históricos são desprezados. O filme, baseado no livro de Lipstadt sobre a batalha legal contra Irving, retrata o britânico como um historiador especializado em distorcer os acontecimentos. Nos posts, no entanto, muitos defendem a tese de que as câmaras de Auschwitz foram “construídas depois da guerra para os turistas verem” ou de que tudo não passou de “propaganda sionista”.
Para o historiador Nicholas Terry, da Universidade de Exeter, na Inglaterra, que pesquisa o comportamento online dos que não acreditam no Holocausto, a atitude não é nova. Desde os anos 1980, nomes como Irving, ou como o escritor italiano Carlo Mattogno, outro notório negacionista, usam seu pseudoconhecimento acadêmico para desmentir as provas e os sobreviventes, acusando a mídia ocidental de ser parte da “conspiração”. Mas, na era da pós-verdade, em que fatos pouco importam diante de crenças pessoais e apelo à emoção, essa fantasia ganha outra dimensão.
“A negação na era da web 2.0 usa as novas plataformas para armar uma onda de propaganda: videodocumentários, vlogs, spams, otimização de mecanismos de busca, sites-espelho, que replicam conteúdo, digitalização de livros antigos de negacionistas, provocações em comentários e fóruns. Pode ser extremamente difícil evitar a negação. O Google foi recentemente forçado a mudar seus algoritmos porque a pesquisa em inglês por ‘o Holocausto aconteceu?’ levava diretamente a sites nacionalistas brancos e que negam o Holocausto. A maior parte dessa propaganda é ineficaz, mas convence algumas pessoas, e torna bastante fácil para alguém que já está inclinado ao antissemitismo cair na teia”, explica Terry.
O acadêmico encaixa as interpretações distorcidas como parte de uma “tuiterificação”, ou seja, disseminação de posts que não negam apenas o Holocausto, mas também os primeiros passos do homem na Lua em 1969 (tudo não teria passado de uma farsa da Nasa) e as razões do 11 de Setembro (o governo americano sabia do ataque, mas precisava justificar a invasão do Afeganistão e do Iraque), entre outras teorias conspiratórias.
“Como verdadeiros crentes de teorias da conspiração, quem nega o Holocausto acredita fervorosamente que está em posse dos fatos corretos. Eles se consideram ‘buscadores da verdade’. Mas compartilham o mesmo desprezo e desconfiança pela mídia e pelo meio acadêmico que se pode encontrar entre os céticos da mudança climática, os teóricos da conspiração do 11 de Setembro, os que acreditam em alienígenas da Antiguidade. Todos eles rejeitam o conhecimento porque isso é inconveniente para suas crenças e fantasias”, diz Terry.
Os negacionistas não estão necessariamente ligados a partidos ou movimentos neonazistas, como explica o pesquisador. Políticos populistas da extrema-direita na Europa, por exemplo, rejeitam essa tese por achar que é uma distração que atrapalha suas metas, como o combate à imigração. A revista digital “The Occidental Observer”, publicação nacionalista americana, proíbe posts que negam o Holocausto. Mas a discriminação a judeus é inerente à expansão das vozes extremistas.
“A negação do Holocausto e o revisionismo são um meio para legitimar o antissemitismo e outras formas de racismo. Pela teoria pervertida, se a história do Holocausto for enfraquecida, as pessoas não precisarão ter simpatia por judeus ou outros grupos que enfrentam abuso e violência agora. É por isso que temos de enfrentar e derrotar os negacionistas”, diz Marie van der Zyl, vice-presidente do Conselho de Representantes dos Judeus Britânicos, que explora o potencial educativo da internet para combater a rejeição da verdade sobre o genocídio.
Em países como Alemanha, Áustria e Hungria, negar o horror nazista é crime. Nos EUA e no Reino Unido, prevalece a liberdade de expressão. No entanto, é cada vez maior a pressão para que gigantes da era digital, como Google, Twitter e Facebook, barrem as ofensas racistas e notícias falsas.
Certas coisas são verdades. Elvis está morto. As calotas glaciais estão derretendo. E o Holocausto aconteceu.
“Negação” estreia nos cinemas do Brasil no dia 9 de março
Filmes de tribunais se apoiam na tensão entre os argumentos — e a retórica — dos dois lados de uma disputa. Sua graça está justamente em opor ideias, sugerindo ao espectador uma dúvida sobre quem detém a razão.
Mas o que sobressai em “Negação” é o fato de sua trama ser um filme de tribunal sobre o maior crime de todos, contra o qual parece não haver argumento razoável para justificar um embate. Ele põe em julgamento o Holocausto. E encontra um personagem com disposição a negá-lo.
Coproduzido pela BBC, com estreia no Brasil marcada para 9 de março, “Negação” se baseia no livro da historiadora americana Deborah Lipstadt, em que ela narra seu confronto com o inglês David Irving, um historiador famoso por negar o Holocausto. Deborah é interpretada por Rachel Weisz; e Irving, por Timothy Spall. No elenco destacam-se ainda Tom Wilkinson e Andrew Scott, como os advogados que defenderam a historiadora na ação de calúnia movida por Irving em 1996.
Pela temática, é curioso que “Negação” siga um formato clássico de filme de tribunal. Há até uma viagem ao campo de concentração de Auschwitz, na qual discutem-se evidências que comprovem ou desmintam o assassinato de milhões de judeus por ordem nazista. É possível imaginar algo do tipo em 1996? E é possível aceitar que ainda hoje existam figuras como Irving?
O roteirista de “Negação” é David Hare, dramaturgo e cineasta inglês, mais conhecido por ter sido indicado ao Oscar pelos roteiros de “As horas” (2002) e “O leitor” (2008) — este último, aliás, também uma história em que os personagens olham para o passado para lidar com o trauma do Holocausto. Seu diretor também é uma figura conhecida, mas por produções mais comerciais, como “O guarda-costas” (1992, aquele mesmo com Whitney Houston e Kevin Costner) e “Volcano: A fúria” (1997).
Num texto que escreveu para o jornal “The Guardian”, em setembro, Hare citou uma frase dita por Deborah Lipstadt no filme, uma que resume bem o absurdo da situação passada pela historiadora: “Certas coisas são verdades. Elvis está morto. As calotas glaciais estão derretendo. E o Holocausto aconteceu”.
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