A boa notícia de que a Secretaria Estadual da Cultura está para lançar em fac-símile o conjunto dos 60 números do jornal de cultura Nicolau, fundado em 1987, enseja uma série de considerações, a começar pela constatação de que faz falta uma história do jornal contada pelos membros sobreviventes da equipe fundadora a diminuta equipe que tirou o projeto do mero campo das intenções para catapultá-lo ao primeiro plano das letras nacionais.
Tal história seria importante não apenas para desfazer os mitos e os equívocos que se acumulam em torno da questão dos créditos quem era quem e fazia o quê no jornal como, principalmente, para esclarecer com idoneidade o registro dos fatos internos de uma publicação que teve a sua importância no Brasil dos anos 80.
O conhecimento dos fatos internos importa, sim, ao estabelecimento de uma adequada periodização da história do Nicolau. Sabe-se que houve uma dramática ruptura à altura do número 26, o que, por si só, já torna inadequada a divisão gráfica do conjunto em três volumes de vinte números cada, como se anuncia.
Na ocasião, a pequena equipe se demitiu unanimemente do projeto, em solidariedade com o designer e produtor gráfico Luiz Antonio Guinski, na esteira de sua arbitrária demissão, provocada por divergências com o secretário da Cultura na época, o advogado René Dotti. Somente o editor nominal, o escritor Wilson Bueno, foi mantido no posto. Fosse ele o real comandante da equipe, teria saído com todos os demais. Um capitão não abandona a tropa no meio do ataque.
Ora, o jornal tal qual foi criado e tal qual foi editado durante esta longa primeira fase a fase, justamente, em que firmou-se como uma publicação respeitada nacionalmente tinha, por assim dizer, "a cara do Guinski", refletindo as convicções e as escolhas estéticas deste extraordinário artista plástico paranaense e de seus brilhantes assistentes, donde se infere que a ruptura mencionada não é nem de longe um mero detalhe de composição de equipe.
Ao contrário, interessa ao estudo do próprio jornal que, desse momento em diante, vive outra fase, outra estética, com outra redação e outra dinâmica embora mantivesse, no essencial, as seções e colunas desenvolvidas na fase heroica, inaugural. Sob o prisma de sua organização interna, o mais notável dos fatores que marcaram a primeira fase, gradualmente revogado à medida que a publicação se firmava como referência, foi o caráter coletivo do trabalho editorial. Não havia chefes; havia uma divisão de trabalho, e um processo de decisão editorial feito no plural e mediante consenso. O editor nominal era então uma rainha da Inglaterra. O que contava era o entusiasmo coletivo, num regime de todos por todos.
Prêmios e armadilhas
A hierarquia inscrita no expediente só começou a "pegar" quando vieram os prêmios. E a opinião pública passou a identificar a criação com apenas um dos criadores, que falava publicamente pelo conjunto. Neste sentido, a maioria da equipe caiu numa armadilha. Neste sentido, o caráter coletivo da criação editorial foi uma vítima do próprio sucesso. Viriam depois os ensaios de condicionamento da redação, com a proposta de criação de um conselho editorial, naturalmente formado por nomes externos, naturalmente animados da vontade de intervir num espaço de comunicação da mais alta visibilidade.
Da importância do trabalho coletivo da equipe fundadora, bem como dos novos ventos que passaram a soprar, diz muito, por exemplo, o fato de que, em pouco mais de dois anos, a diminuta equipe inaugural obteve a proeza de editar 26 números, produzidos com admirável qualidade e pontualidade junto a uma Imprensa Oficial compreensivelmente sobrecarregada, arrastando-se a fase seguinte, de cerca de cinco ou seis anos, pelos números restantes, com tiragem e periodicidade inteiramente outras.
O jornal no período seguinte, reconstruído pelo escritor Wilson Bueno a partir dos moldes desenvolvidos pela primeira equipe, ganha as cores, sinuosidades e arabescos do que se poderia chamar, para as criações gráficas, com perdão do cacófato, e sem nenhum preconceito, uma estética gay. Mais uma razão para reconhecer a periodização do Nicolau por fases está no seu significado para o estudo do próprio escritor. A fase 2 é afinal a fase em que Bueno opera com inteiro protagonismo, como o chefe de uma hierarquia.
Seria importante que a iniciativa, por muitos títulos louvável, da Secretaria de Estado da Cultura, viesse acompanhada de um dossiê contendo os depoimentos dos fundadores ainda vivos e, se possível, de um estudo que respondesse às seguintes questões:
1. Como se criou e se estruturou a pauta do jornal, com seções e colunas endereçadas a um vasto público leitor, nos âmbitos do estado e do país. Cada uma dessas seções tem a sua história, a exemplo da seção "experiência paranaense", que foi colher o testemunho de nossos conterrâneos desde o Eixo Monumental até as barrancas do Rio Paraná. É dessa secção, entre outros, a extraordinária história de Milton e Vera Baptista, ele médico e ela professora, que largaram o conforto da capital para exercer a medicina e o ensino no sertão de Primeiro de Maio: "Nós na beira do Paranapanema".
2. Como se explica que o jornal fosse encartado como suplemento de cultura em cerca de 25 órgãos da imprensa diária paranaense, produzindo, aliás, pela primeira vez na história do Paraná, um espaço de comunicação impressa que abrangia todo o território do estado com igual intensidade, numa época em que prevaleciam marcadamente, sob esse aspecto, as divisões regionais. Consta que o Nicolau alcançou nesta primeira fase a tiragem de 150 mil exemplares! Anotar que o encarte era sistematicamente acompanhado da reprodução da capa na primeira página dos jornais anfitriões.
3. Como se organizava a divisão de trabalho do Nicolau quanto às suas pautas. Sabe-se que Wilson Bueno mobilizava a sua rede de relações junto à intelectualidade carioca, trazendo por exemplo a contribuição do escritor João Antônio para as páginas do jornal; que Josely Vianna Baptista trouxe para o Nicolau a contribuição de seus amigos e conhecidos das vanguardas de São Paulo e de Londrina, entre os quais todo o time da poesia concreta e pós-concreta, além de apresentar à redação os grandes nomes londrinenses, entre os quais os de Rodrigo Garcia Lopes, que veio a integrar a equipe numa fase intermediária, e do poeta e dramaturgo Maurício Arruda Mendonça; que o coordenador e produtor gráfico Luiz Antonio Guinski recrutou numerosos artistas plásticos curitibanos para contribuições de valor inestimável na ilustração do jornal, a começar pelas capas, chocantes pela beleza e pelo sentido. Que sem Guinski, sua ciência e sua arte, ao mesmo tempo o designer do jornal e seu produtor gráfico, não teria havido, simplesmente, Nicolau.
5. Qual a contribuição do jornal para a estruturação do campo literário paranaense. A distância entre Londrina e Curitiba, por exemplo, tornou-se muito menor, com o diálogo que se estabeleceu nas páginas do Nicolau. O Oeste e o Sudoeste, por vozes como as de Jorge Baleeiro de Lacerda e Hermógenes Lazier, passaram a se fazer ouvir nas outras regiões do Estado. A polêmica como a que contrapôs Paulo Leminski e Otávio Duarte serviu para levantar dúvidas importantes sobre a estruturação das carreiras literárias e sobretudo sobre a organização do campo literário entre nós.
6. Também a recepção do jornal em outros centros, nacionais e estrangeiros, mereceria estudos ou, no mínimo, pré-estudos que delineassem pautas para estudos posteriores. Nicolau foi bater nas mais remotas portas do planeta. Também no plano das pautas, Josely Vianna Baptista que já dava os primeiros grandes passos nos seus trabalhos de tradutora, à época vertendo para o português o labiríntico "Paradiso" de Lezama Lima operou a conexão do jornal com uma rede de escritores iberoamericanos, e abriu com a colaboração permanente de Luli Miranda as primeiras veredas dos estudos paraguaios entre nós.
7. Como se formou a audaciosa decisão política, no interior da administração estadual, de emprestar força e prestígio, de mobilizar recursos e abrir caminhos administrativos, para o nascimento e o crescimento do jornal. Quais as tentações, autorizadas pela lógica do poder, de interferir na pauta do jornal, até com certa legitimidade. Qual a leitura, noutras palavras, que o poder no Estado fazia do Nicolau? Até hoje nada se ouviu a respeito do então secretário da Cultura, o doutor René Dotti, ou do então governador Alvaro Dias, que parecem satisfeitos com a versão mitológica em curso.
8. De que maneira a jornalista Adélia Maria Lopes, então editora do suplemento Almanaque de O Estado do Paraná e assessora de comunicação da Cultura compreendeu e formulou as tarefas de jornalismo cultural em sentido técnico estrito, no interior do jornal Nicolau. Sabe-se que Adélia atuou desde a fundação em momentos decisivos da história do jornal, soprou conselhos definidores e realizou pautas que emprestaram a urgência da realidade e a dimensão da reportagem à investigação cultural.
Muitas outras questões podem e devem ser respondidas num dossiê que eventualmente venha junto com a anunciada publicação facsimilar do jornal. O que definitivamente não se espera é que venha acompanhado da reiteração do mito, forjado, inverossímil, de que tudo se deveu a uma só pessoa. Melhor seria então que se republicasse o Nicolau na íntegra, à secas, sem mais nada, e se deixasse para a História da cultura e seus profissionais o restabelecimento da verdade. E aí veremos como a miúda política e a miúda intriga permitiram que, no âmbito do Serviço Público, um belíssimo projeto coletivo se transformasse em mais um cartório pessoal.
Jaques Mario Brand, jornalista e doutor em História, participou na condição de servidor público do Estado do Paraná da fundação e consolidação do jornal Nicolau e saiu voluntariamente do projeto, na altura do número 8.
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