
"Como posso ter suportado viver até agora?" exclamou Friedrich Nietzsche ao chegar a Nápoles em sua primeira viagem ao Sul. Era 1876, o filósofo tinha 32 anos e estava em meio a uma crise mental e física, com nevralgias e enxaquecas devastadoras que o punham frequentemente de cama. Insatisfeito com o cargo de professor de filologia na Universidade de Basileia, iniciara sua ruptura com a grande influência do seu pensamento até então: a música de Richard Wagner.
Lançado em junho no Brasil, o livro de Paulo DIorio, Nietzsche na Itália A Viagem Que Mudou os Rumos da Filosofia (Zahar), relata essa intensa aventura cultural por que passou um dos pensadores mais influentes do nosso tempo. (Repararam quantas citações Woody Allen faz a Nietzsche em seu último filme, Magia ao Luar?) Na atmosfera napolitana, o pensador experimenta uma verdadeira iluminação, como descreve DIorio: "Em Sorrento, no grande quarto do segundo andar de sua pensão, que dá para um bosquezinho de laranjeiras e, mais ao longe, para o mar, o Vesúvio e as ilhas do golfo de Nápoles; nas tardes luminosas do outono, silenciosas e perfumadas pelo aroma das laranjas, ainda impregnadas do sol do meio-dia e do sal do mar; durante os serões de leitura em voz alta, com amigos, ou durante as excursões a Capri ou ao Carnaval de Nápoles; durante passeios pelas aldeolas que se debulham ao longo de um dos mais belos golfos do mundo, nessa terra onde os antigos acreditavam escutar as sereias; durante as manhãs passadas escrevendo os primeiros aforismos de sua vida, cujos rascunhos conservam até hoje o nome de Sorrentiner Papiere, Nietzsche decide tornar-se filósofo." Foi a condessa Malwida von Meysenbug, intelectual, autora de Memórias de Uma Idealista, quem organizou a viagem de Nietzsche e convidou os amigos do filósofo Paul Rée e Albert Brenner para participarem da excursão. Malwida e sua camareira Trina instalaram-se com o trio na Pension Allemande, na Villa Rubinacci, a quinze minutos a pé de Sorrento, para desagrado de Richard e Cosima Wagner, que os queriam perto do seu pomposo Hotel Vittoria. Nietzsche e seus amigos caminhavam pelos laranjais e bosques de oliveiras, almoçavam à beira-mar, junto aos pescadores de Sorrento, degustando ostras fresquíssimas com espumante Asti. Logo, os locais o chamavam de Dom Federico. Os serões eram marcados por uma animada competição de aforismos, muitos deles inspirados nas anedotas dos pescadores.
Na Itália, Nietzsche iniciou um processo de rejeição da sua cultura e da própria pátria. (Não por acaso, viveu grande parte da vida e morreu como apátrida, tendo renunciado à nacionalidade alemã para trabalhar na Suíça.) DIorio detalha como Nietzsche escreveu sobre "essa primeira revelação da magia do sul, quando o pôr-do-sol sobre Posillipo lhe abriu bruscamente os olhos": "Como posso ter suportado viver até agora! Enquanto o veículo rodava por Posillipo luz do entardecer.
Posillipo e todos esses cegos cujos olhos serão abertos.
Não tenho força suficiente para o norte: lá reinam almas grosseiras e artificiais que trabalham tão assídua e necessariamente na medida da prudência quanto o castor em sua construção (...) o norte da Europa está repleto disso. E pensar que foi entre elas que passei toda a minha juventude. Eis o que me impressionou quando pela primeira vez vi chegar o entardecer com seu vermelho e seu cinza aveludados no céu de Nápoles como um arrepio, como por pena de mim mesmo pelo fato de ter começado minha vida sendo velho, e me vieram lágrimas e o sentimento de ter sido salvo, inda que no último instante.
Eu tenho disposição suficiente para o sul." Nietzsche pretexta uma consulta a um oftalmologista para ver o Carnaval de Nápoles. Em meio ao desfile, enxerga, numa viela vizinha, a passagem de um solene cortejo fúnebre. O filósofo transfigura o Carnaval mesclado à morte num vislumbre da superação do sombrio ritual católico pelo homem moderno.
O idílio mediterrâneo de Nietzsche não dura muito. Tendo chegado a Nápoles em 25 de outubro de 1876, ele deixa Sorrento em 7 de maio de 1877 apenas seis meses depois. Volta ao Norte sombrio, onde morre, em Weimar, no alvorecer do século 20: em 1900, aos 55 anos. Mas sonha sempre em voltar a viver no Sul. Escreve DIorio: "Já em setembro de 1877, durante uma noite de insônia passada encantando-se com as adoráveis imagens da natureza sorrentina, ele se interroga sobre a possibilidade de viver nos altos da ilha de Capri, em Anacapri. Durante o verão de 1879, Nietzsche ainda cogita passar o inverno nos arredores de Nápoles. Mas, ao saber que Wagner tem intenção de se estabelecer ali, o que realmente fará a partir de janeiro de 1880, Nietzsche prefere desistir de seu projeto." A influência dos dias felizes passados em Sorrento o acompanha até o fim. A forma condensada da anedota dos pescadores levou Nietzsche à escolha do seu meio de expressão favorito a partir daí: o aforismo. Matutavam os humildes de Sorrento: "Se você quer fazer Deus rir, conte a ele os seus planos para o futuro". Ideia que o novo Nietzsche, de cabeça feita pelo sol do Mediterrâneo, transfigurou para: "Eu sempre rio daquele que não sabe rir de si mesmo."
Torna a Surriento
Cabe aqui um puxão de orelha em Paolo DIorio. Apesar de sua erudição ou talvez por causa dela ele escreve, no último capítulo, intitulado Torna a Surriento: "Na lembrança da primeira temporada em Sorrento, ele [Nietzsche] pensa frequentemente em seguir o conselho de uma antiga canção italiana intitulada Torna a Surriento/Retorna a Sorrento." Ignora DIorio que a famosa canção só foi publicada oficialmente em 1905, cinco anos após a morte do filósofo. Ninguém esquece os primeiros versos, em dialeto napolitano: "Video mare quantè bello,/ spira tantu sentimento..." Gravada pelos maiores cantores do mundo, frequentou até as paradas de sucesso. Entre os que a prestigiaram figuram os italianos Enrico Caruso, Beniamino Gigli, Giuseppe Di Stefano Luciano Pavarotti, Ruggero Raimondi; os ítalo-americanos Mario Lanza, Frank Sinatra ("Come Back to Sorrento") e Dean Martin ("Take Me In Your Arms"); o americano Elvis Presley ("Surrender") e Meat Loaf; os espanhóis José Carreras e Plácido Domingo; E o brasileiros Jerry Adriani. A música foi composta em 1902 pelos irmãos Ernesto (música) e Giambattista (letra) De Curtis, durante uma visita a Sorrento do Primeiro Ministro italiano Giuseppe Zanardelli, cobrando-lhe as promessas de melhoramentos à cidade, principalmente a rede de esgotos... Se as promessas foram cumpridas, ninguém lembra, mas a canção ficou eternamente presente como a marca registrada de Sorrento.




