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Um bolinho.

Com alguma liberdade interpretativa, dá para afirmar que um bolinho simples em forma de concha, chamado madeleine e muito comum no Nordeste francês, está na origem de uma obra-prima literária.

Seminal, única, basilar e gigantesca estão entre os adjetivos que tentam descrever Em Busca do Tempo Perdido, as mais de 3 mil páginas escritas por Marcel Proust (1871 – 1922) no início do século passado.

Os sete volumes que compõem o romance ganham nova edição pela Globo, começando por No Caminho de Swann (560 págs., R$ 37) e À Sombra das Raparigas em Flor (672 págs., R$ 40), ambos com a tradução clássica de Mario Quintana. A novidade é o material extra e o design gráfico dos livros. Aos posfácios de estudiosos do Brasil e da Europa, somam-se prefácios, resumos, notas e cronologia – trabalho criterioso levado a cabo por Guilherme Ignácio, uma das referências nacionais no estudo da obra proustiana.

Ignácio passou quase toda sua vida acadêmica ocupado com o autor francês. Fez parte de seu doutorado na França, onde teve a chance de transcrever a íntegra de três dos 75 cadernos deixados por Proust. "Eles contêm a história da elaboração da obra e devem começar a ser publicados em breve", revela.

As novas edições de Em Busca do Tempo Perdido, no tamanho 16 cm x 23 cm, não alteram as traduções feitas por Carlos Drummond de Andrade, Manuel Bandeira, Lúcia Miguel Pereira e Quintana. Na opinião de Ignácio, o grande diferencial dessas reedições é mesmo o "aparato de leitura".

Por meio dos resumos, é possível localizar com rapidez uma passagem específica do livro. Em menos de um minuto, sabe-se que o episódio da madalena extraordinária – não confunda o bolinho com o prato de purê de batata, carne moída e molho tomate – está lá, a partir da página 71.

"E de súbito a lembrança me apareceu. Aquele gosto era o do pedaço de madalena que nos domingos de manhã em Combray (...) minha tia Léonie me oferecia" e o autor segue descrevendo o efeito impressionante e inesperado do quitute sobre sua memória involuntária.

Quanto ao valor das notas, Ignácio descreve uma situação específica. "No sexto parágrafo do primeiro volume (No Caminho de Swann), o narrador nos fala da ‘sra. de Saint-Loup’ – mas quem é esse personagem? Ora, o leitor só vai ficar sabendo disso quase três mil páginas depois! Entretanto, o personagem já está presente no primeiro volume só que com outro nome: uma nota indicativa se faz, então, necessária."

A parte gráfica, assinada pelo casal Raul Loureiro e Claudia Warrak, torna as edições ainda mais sedutoras. A dupla de designers consegue imprimir uma identidade própria e, de certa forma, comum a todos os projetos que assumem – como no Livro das Mil e Uma Noites (Globo) ou na reedição da obra de Erico Verissimo (Companhia das Letras).

No caso de Proust, as letras ficaram maiores, assim como o entrelinhamento. "O texto está tão melhor distribuído que chega a haver uma diferença de 50 páginas com relação à edição antiga do livro", compara Ignácio.

Iniciantes

Para alguém que nunca leu Em Busca do Tempo Perdido, essa é, de longe, a melhor edição lançada no Brasil. Aliás, um iniciante pode pensar, existe uma forma ideal para se ler os sete volumes? "Alguns dizem que a melhor indicação é estar bem doente, se possível de cama, para conseguir lê-lo", brinca Ignácio. "Li o primeiro volume em 1991 e, no contexto de muitos trabalhos para a faculdade, não me animei a seguir em frente. Só dois anos depois, quando tranquei meu curso e passei um ano e meio em casa, é que tive disposição, vamos dizer, afetiva e li um volume por semana, tal a intensidade da paixão pelo livro."

O pesquisador cita o filósofo Walter Benjamin, primeiro tradutor de Proust para o alemão. "Ele dava justamente essa dica para o verdadeiro leitor de romances: literalmente empanturrar-se."

No ensaio Proust (Cosac Naify), Samuel Beckett defende que, para o francês, "não há diferença entre a memória de um sonho e a memória da realidade". Essa é uma questão-chave para se transitar pelas milhares de páginas de Em Busca do Tempo Perdido.

"Os primeiros parágrafos dessas três mil páginas começam justamente com essas imagens em que um narrador em primeira pessoa não consegue distinguir o que acaba de viver em sonho da intensidade de suas lembranças e da visão da realidade presente a seu redor", afirma o acadêmico.

"Num sentido mais radical, o narrador destaca a importância dos sonhos para o livro por causa do trabalho exclusivo com imagens. O próprio Proust escrevia para amigos, dizendo que, se quisesse, teria escrito um ensaio filosófico, mas tinha um objetivo artístico, em que o que importa são prioritariamente as imagens. O narrador chega a dizer que um livro que defende teses é como um objeto sobre o qual se esqueceu o preço."

Iniciados

O desafio dos iniciados é ler Proust à luz da prosa e da poesia francesas que o antecederam. Antes de escrever Em Busca do Tempo Perdido, explica Ignácio, o autor "produziu uma série de pastiches imitando – para destruir – toda uma galeria de escritores que o precederam. Tais pastiches são uma espécie de guia literário dos excessos de cada um desses escritores e uma indicação preciosa do que ainda estava por vir".

Outro episódio fundamental para a compreensão de Proust é o projeto de crítica literária que o autor planejou contra Charles Augustin Sainte-Beuve (1804 – 1869). "Proust nos ensina a ler os escritores que ‘o grande’ Sainte-Beuve não compreendera, como Baudelaire, Flaubert, Stendhal e Nerval, ou seja, simplesmente os maiores escritores do século 19 francês", explica.

Proust consegue abordar inúmeros assuntos relevantes – até porque tem espaço para tanto. Fala da aristocracia francesa (No Caminho de Guermantes), do anti-semitismo – o famoso Caso Dreyfus aparece no mesmo livro – e, inclusive, de sexo (mais claramente em Sodoma e Gomorra).

"Como estamos no meio da caminhada do herói, os personagens já incorporaram o brilho e a densidade de três volumes anteriores e se preparam para o arremate final dos três últimos. Embora tenha lido Sodoma e Gomorra pelo menos três vezes inteiro, de ter feito resumo de cada uma de suas páginas, feito o prefácio dele e colocado notas de leitura, não acredito que realmente o compreenda."

É confortante, vindo de alguém que se relaciona com a obra de Proust há mais de 15 anos.

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