Romance
Molloy
Samuel Beckett. Tradução de Ana Helena Souza. Biblioteca Azul, 180 págs. R$ 39,90.
Prêmio Nobel de Literatura de 1969, o irlandês Samuel Beckett sempre foi mais reconhecido por seu trabalho desafiador como dramaturgo do que como romancista. O que é um equívoco. O escritor de Esperando Godot "Alguém olha, dizendo: ele dorme, não sabe direito, está dormindo. (Pausa) Não posso continuar. (Pausa) O que foi que eu disse?" trouxe para o romance, com sua Trilogia Pós-Guerra, uma dimensão particular das experiências de linguagem.
Molloy, o primeiro volume, escrito em 1951, é a sua estreia em língua francesa ele dizia que qualquer escritor pode escrever em inglês sem ter estilo. O mote é até simples. Um sujeito se encontra num quarto sem saber o porquê de estar enclausurado. De fato, ele mal sabe quem é. Está vigiado por um homem chamado Moran, também sem muita convicção de seus objetivos. No primeiro bloco narrativo temos, portanto, o início da jornada ao interior da linguagem.
Tessitura
Coxo e confuso, Molloy alterna entre o admirável, o sórdido e o delirante. Ele se interroga com constância e até parece se divertir com a própria aleatoriedade. "O fato é, e lamento-o, mas é tarde demais agora para remediá-lo, que pus ênfase demais sobre as minhas pernas, ao longo de toda essa caminhada, à custa do resto. Pois não era um reles aleijado, longe disso, e havia dias em que as minhas pernas eram o que eu tinha de melhor, com exceção do cérebro capaz de formar um juízo desses." Ou: "Esqueci a ortografia também, e a metade das palavras".
No segundo momento, o vigia conta sua pequena vida de forma mais linear e, logo, mais respeitador das convenções narrativas. Mas não se iluda. Moran oferece outro ângulo de esfacelamento e degradação. Em tempos de Europa em reconstrução e perspectivas nada admiráveis de futuro, Beckett entrega dois personagens que quase se fundem num só, ambos sem lugar no mundo, perguntadores sem rumo: "É verdade que São Roque, bebê, não queria mamar nem às quartas nem às sextas?"
Aridez
Por detrás de todo o jorro narrativo-alucinado de Molloy, paira a desconfiança de que os herméticos desfrutam de um espírito fanfarrão intrínseco, naquilo que o filósofo francês Jacques Ranciére dizia sobre a arte ser a manifestação de um pensamento fora de si, uma linguagem cuja virtude está ligada a sua não-transparência.
Beckett impõe um certo humor que pode ser avaliado como desespero, um exercício de contemplação de mundo sem possibilidade de razão: "É meia-noite. A chuva está batendo nas janelas. Não era meia-noite. Não estava chovendo." GGGG