Não bastasse a afronta a direitos humanos elementares, a prática de tortura distorce as investigações para se chegar ao que de fato ocorreu num crime, por exemplo: novas vítimas são feitas e os verdadeiros responsáveis muitas vezes ficam impunes, num processo que parte da sociedade veladamente autoriza e aplaude mas em que, ao final das contas, todos saem perdendo.
"O inocente confessa, o culpado não", aponta Isabel Kugler Mendes, representante do Paraná na Coordenação do Sistema Internacional de Proteção dos Direitos Humanos da OAB nacional e integrante da Comissão Permanente dos Direitos Humanos do Estado do Paraná (Coped). "O culpado aguenta, pois sabe que não vão chegar a ponto de matá-lo: ele suporta para se livrar. Agora, o inocente, não precisa muito para ele confessar. Ele mesmo fala: moçada, vamos dizer tudo o que eles querem para a gente parar de apanhar." Até que o processo chegue às mãos do juiz, prossegue a advogada, a "verdade" já foi submetida aos mais diversos tipos de distorção.
Professora de Criminologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e doutora no assunto pela Universidade Federal do Paraná (UFPR), Vanessa Chiari Gonçalves lembra que a chamada "tortura-prova" ocorre no momento da prisão ou na fase investigativa, mas que, teoricamente, as confissões válidas são apenas as realizadas perante o juiz. "Ocorre que não é incomum encontrarmos julgados em que o magistrado desconfia da declaração de inocência do réu em juízo, porque este mesmo acusado confessou a autoria do delito perante a autoridade policial. O problema, então, é que esta confissão realizada na fase policial pode influenciar a decisão do juiz, ainda que ele omita este argumento na sua sentença. De outro lado, dificilmente a alegação de tortura na fase policial é investigada. Parte-se do pressuposto de que o acusado está mentindo quando alega que só confessou a autoria do delito porque foi torturado."
Abuso
A "licença" para um agente agir com violência, na visão da professora da UFGRS, é obtida por meio de vários fatores: o tipo de formação insuficiente em direitos fundamentais nas academias; a influência e a pressão que os novos agentes recebem dos mais antigos ou da própria corporação; o poder conferido pela arma e pela condição de policial; o apoio da população influenciada pela mídia, no sentido de que os policiais devem ser implacáveis e violentos com os supostos bandidos: "Veja que o personagem Capitão Nascimento, de Tropa de Elite, virou herói nacional e torturava pessoas pobres, mesmo familiares ou vizinhos de supostos traficantes, com o argumento de combate às drogas. Outro aspecto que contribui para o abuso de poder é a sensação de impunidade quando a vítima da tortura é uma pessoa sem voz na sociedade."
No Paraná, trata-se de uma "triste realidade histórica", na definição de Isabel Kugler Mendes. "É apenas uma parte da polícia que adota esse expediente degradante, mas são muitas as denúncias nas cadeias e penitenciárias do Estado." Recentemente, por exemplo, a advogada ficou sabendo de um detento asfixiado por uma toalha repleta de sabão em pó. "Eles relatam torturas físicas, psicológicas, mas têm muito medo do que pode ocorrer. A única coisa que querem é sair da cadeia."
De acordo com dados da Coordenação Geral de Combate à Tortura da Secretaria da Presidência da República, o Paraná é o terceiro estado com maior número de denúncias nos primeiros sete meses deste ano. Segundo o Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaeco), nos últimos três anos, 28 agente públicos foram investigados não há, contudo, informações sobre o desdobramento dos processos.
Além do caso da garota Tayná, outras ocorrências no estado ganharam projeção, como a que ficou conhecido como a das Bruxas de Guaratuba em que a condenada pelo assassinato de um menino, em 1992, garante ter sido vítima de tortura e o de Clodimar Pedrosa Lô, adolescente de 15 anos acusado de furto que acabou morto na "Sala dos Suplícios" de uma delegacia de Maringá no fim dos anos 1960. Recentemente, a Kan Editora relançou Dos Porões da Delegacia de Polícia, livro do jornalista Marinósio Filho (1914-1990), pioneiro da reportagem policial de Londrina, com narrativas de abusos registrados rotineiramente na cidade.
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