Nos passos de Kapuscinski
Grande ídolo e inspiração de Fábio Zanini, jornalista da Folha de São Paulo que desde o ano passado mantém o blog Pé na África e acaba de lançar um livro homônimo (Publifolha), o polonês Ryszard Kapuscinski inicia o monumental Ébano (Cia. das Letras) com um aviso: "Vivi na África durante vários anos. (...) Viajei muito.
Viagens pelo coração do Brasil revisitadas
A literatura de viagem não tem no Brasil a mesma tradição que lá fora, sobretudo nos mundos de língua inglesa pródigo em aventureiros que são, ao mesmo tempo, grandes prosadores do idioma e francesa, que deu ao mundo alguns dos principais poetas-viajantes (Rimbaud talvez o principal deles) e outros tantos pensadores e filósofos do ato de viajar.
Saint-Hilaire e as trilhas da identidade
O naturalista francês Auguste de Saint-Hilaire percorreu, entre 1816 e 1822, cerca de 8 mil quilômetros pelas principais províncias brasileiras do centro ao sul do país, caminho comum de diversos viajantes que, beneficiando-se da abertura concedida com a vinda de d. João VI, fizeram expedições para catalogar as "terras e as gentes" do Brasil para a expansão dos domínios europeus.
Peregrinos, andarilhos, vagabundos e "vagamundos"
Por que viajar? Há viajantes de todos os tipos nos dias de hoje, pela facilidade de transportes, claro, mas igualmente porque os destinos possíveis, conhecidos, são muitos, e nem sempre foi assim.
É tempo de viajar. Aeroportos e rodoviárias abarrotados, destinos turísticos tentando comportar o dobro ou o triplo de sua população normal, cada vez mais gente pegando a estrada: por terra mesmo, mas também por céus e, por que não, mares na onda dos cruzeiros a preços acessíveis até à chamada "classe C emergente".
Mas houve época em que ir conferir in loco a boa-nova de terras distantes era impossível, ou coisa para muito poucos.
Em lugar do guia de viagem de hoje livros de utilidade prática que pressupõem a repetição de um percurso e se dedicam a facilitar a vida de quem vai fazer o mesmo passeio de um "desbravador" havia o relato de viagem, que não se limitava, vale dizer, ao diário de bordo. Toda uma tradição se formou em torno do que, em inglês, passou a se chamar travel writing. Nasciam um tipo de autor e um gênero de texto: os aventurosos escritores-viajantes e sua colorida literatura de viagem, cheia de imaginação, pois era preciso deslumbrar um leitor que jamais botaria os pés naqueles mesmos lugares.
A tradição remonta aos gregos e o que mais é a Odisséia, de Homero, senão uma jornada por terras distantes? e às peregrinações de Abraão no Velho Testamento, com escalas obrigatórias no Oriente dos épicos de Gilgamesh e Mahabharata, ou ainda nos relatos de grandes aventureiros como Marco Polo e os descobridores portugueses e espanhóis basta lembrar os diários sobre o Novo Mundo deixados por um Pero Vaz de Caminha ou um Américo Vespúcio.
Os séculos seguintes foram de exploração das colônias por seus respectivos impérios. E, particularmente entre franceses e ingleses, surge a figura do escritor-viajante munido de curiosidade científica não à toa muitos naturalistas, como Saint-Hilaire em sua passagem pelo Brasil, Paraná inclusive (leia artigo na página 3), e até mesmo Darwin deram suas "voltas ao mundo" para desbravar novas paisagens e espécies. Deixaram o tipo de relato que pode ser considerado ancestral direto do que viriam a fazer ou, em alguns casos, já começavam a publicar aventureiros típicos do século 19 e início do 20.
Essa literatura de viagem que tem um pouco de antropologia, outro tanto de cartografia afinal, nem todos os mapas estavam desenhados, àquela altura e muito de reportagem foi a tônica entre os escritores-viajantes que, aproveitando-se de sua condição de "civilizados", oriundos das metrópoles, iam buscar impressões sobre a gente e os lugares mais "exóticos". Existirá hoje algum recanto intocado, habitado por povo tão peculiar, que ainda justifique esses escritores e suas aventuras?
Ou, conforme se perguntou, em artigo recente, o escritor William Dalrymple, ele próprio um dos expoentes da atual literatura de viagem em língua inglesa: "(...) existe realmente algum sentido em se falar desse gênero literário na era da internet, quando é possível obter informação confiável, e instantânea, sobre qualquer lugar do globo?"
Dalrymple aponta que, durante quase uma década, entre os anos 70 e 80, a literatura de viagem foi a vedete. "Ela reemergiu num momento de desencanto com o romance", explica, "e parecia estar se tornando uma séria concorrente para a ficção. Um escritor poderia continuar a usar as técnicas do romance era possível desenvolver personagens, selecionar e delinear a experiência da viagem numa série de cenas e episódios, ordenar a ação de modo a conferir à narrativa uma forma e um ritmo mas escrevendo sobre fatos reais. E, além disso, ao contrário da ficção, a literatura de viagem vendia bem."
Foi, entre as muitas "épocas de ouro" da literatura de viagem, só a mais recente, cujos marcos se deram, quase ao mesmo tempo, com a publicação de dois livros: O Grande Bazar Ferroviário (Objetiva), de Paul Theroux, que percorreu o planeta, quase literalmente, usando o meio de transporte que um dia revolucionou os deslocamentos; e Na Patagônia (Cia. das Letras), de Bruce Chatwin, um mergulho no mundo selvagem contado com sutil poesia. Ao lado dos dois, estavam no auge nomes menos conhecidos e até hoje praticamente inéditos no Brasil como Leigh Fermor.
Por fim, já em 1984, a prestigiosa revista literária britânica Granta dedica um número inteiro à literatura de viagem inspiração também, ainda que não declarada, da Granta brasileira em sua edição número dois, no primeiro semestre de 2008, intitulada Longe daqui. As memórias de viagem de Edmund White, outro assíduo freqüentador da travel writing, sobre o deslumbramento de um americano na Europa valem a edição.
William Dalrymple lança o desafio: "existe futuro para a literatura de viagem?" Ele responde que sim, há uma excelente nova geração de escritores-viajantes na ativa, mas ressalva: "Se, no século 19, a literatura de viagem era principalmente sobre lugares tratava-se de preencher certas lacunas nos mapas descrevendo lugares remotos que poucos haviam visitado a melhor literatura de viagem do século 21 é quase sempre sobre pessoas: explora a extraordinária diversidade que ainda existe no mundo sob a superfície da globalização".
Para o filósofo francês Michel Onfray, autor de Teoria da Viagem (L&PM), a palavra escrita, além do mais, é insubstituível como veículo da memória de quem viaja uma apologia às diversas formas assumidas pelo relato de viagem: o atlas, o poema, a prosa em suas diversas vertentes, até mesmo os "utilitários" guias... "Os lugares do mundo convergem para as telas informáticas ou televisivas, tristemente semelhantes à sua realidade, mas engaiolados (...)", protesta Onfray. "Qualquer linha de um autor, mesmo medíocre, aumenta mais o desejo do lugar descrito do que fotografias, muito menos filmes, vídeos ou reportagens. Entre o mundo e nós, intercalaremos prioritariamente as palavras."
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